O Split Payment e a Falácia dos “Tributos Indiretos”
Por José Ribeiro Neto*
I – EXPOSIÇÃO FÁTICA DA MATÉRIA
O art. 38 da Lei Complementar nº 214/2025, que instituiu o IBS, a CBS e o Imposto Seletivo, assim dispõe:
“Art. 38. Em caso de pagamento indevido ou a maior, a restituição do IBS e da CBS somente será devida ao contribuinte na hipótese em que:
I – a operação não tenha gerado crédito para o adquirente dos bens ou serviços; e
II – tenha sido observado o disposto no art. 166 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional)."
De observar, da simples e imediata leitura do art. 38 supra, que tal dispositivo estabelece restrições de tal monta que, na prática, esvaziam o direito à restituição do IBS e da CBS, quando do pagamento indevido ou a maior pelos contribuintes desses tributos.
Com efeito, segundo o dispositivo, a restituição só será possível se a operação não gerar crédito para o contribuinte adquirente e se observadas as exigências do art. 166 do Código Tributário Nacional (CTN), que condiciona a devolução à comprovação de inexistência de repasse ao consumidor final ou à autorização deste.
Em outras palavras: um direito constitucionalmente assegurado (§ 7.º do art. 150 da CF/1988) transforma-se em exceção quase inatingível, salvo nos casos de desfazimento da operação, haja vista a não concretização do fato gerador desses dois tributos.
Todavia, essas restrições ao direito à restituição podem ser refutadas pelos arts. 31 a 35 da própria LC 214/2025, relativos ao denominado “split payment”, ou “pagamento dividido”.
É o que demonstraremos a seguir.
II – O SPLIT PAYMENT E A ILUSÃO DO REPASSE DO ÔNUS DO PAGAMENTO DO IBS E DA CBS AOS CONSUMIDORES FINAIS
O Sistema Tributário Nacional consagra, desde a Constituição de 1988, um princípio fundamental: o contribuinte tem direito à restituição de tributos pagos indevidamente. O § 7.º do art. 150 da Carta Magna, ao lado do art. 165 do CTN, não deixam margem a dúvidas: se o Estado recebe o que não lhe é devido, deve devolver. Trata-se de uma garantia do sujeito passivo e de uma expressão inequívoca da vedação ao enriquecimento sem causa pelo Poder Público (Fisco).
Não obstante essa clareza normativa, a LC 214/2025, ao regulamentar o IBS e a CBS, trouxe em seu art. 38, como vimos, restrições que, na prática, esvaziam tal garantia fundamental do sujeito passivo.
A contradição salta aos olhos quando se observa o mecanismo do split payment, também introduzido pela LC 214/2025.
Nessa modalidade de quitação dos débitos do IBS e da CBS, as operadoras de cartões e instituições financeiras retêm o IBS e a CBS e os transferem diretamente aos cofres públicos (Comitê Gestor do IBS e Receita Federal do Brasil), repassando ao contribuinte apenas o valor líquido da operação.
Vejamos o que preceitua o caput do art. 31 da citada LC 214/2025:
“Art. 31. Nas transações de pagamento relativas a operações com bens ou com serviços, os prestadores de serviços de pagamento eletrônico e as instituições operadoras de sistemas de pagamentos deverão segregar e recolher ao Comitê Gestor do IBS e à RFB, no momento da liquidação financeira da transação (split payment), os valores do IBS e da CBS, de acordo com o disposto nesta Subseção.
Posteriormente, o próprio sistema prevê ajustes por meio da devolução de créditos ao contribuinte, conforme se observa da regra do § 4.º do art. 33, também da LC 214/2025:
“Art. 33. (...)
(...)
§ 4.º O Comitê Gestor do IBS e a RFB:
I – efetuarão o cálculo do saldo dos débitos do IBS e da CBS das operações de que trata o caput deste artigo, após a dedução das parcelas já extintas por quaisquer das modalidades previstas no art. 27 desta Lei Complementar, no período de apuração; e
II – transferirão ao fornecedor, em até 3 (três) dias úteis contados da conclusão da apuração, os valores recebidos que excederem o montante de que trata o inciso I deste parágrafo.”
Os dispositivos acima transcritos determinam que, após a apuração, se houver saldo positivo, ou seja, se os valores já pagos via split payment superarem os débitos líquidos do período – Conta Gráfica –, o excedente deve ser devolvido ao fornecedor em até 3 dias úteis após o término da apuração, cujo período é mensal.
De lembrar que esse reembolso não é uma mera liberalidade, mas uma necessidade lógica do sistema da não cumulatividade, previsto na própria Constituição Federal. Conforme seus arts. 156-A, § 1.º, inciso VIII, e 195, § 16, com a nova redação dada pela Emenda Constitucional 132/2023. Por conseguinte:
- o sujeito passivo só deve suportar o débito líquido (débitos – créditos, apurados em Conta Gráfica);
- como o split payment antecipa parte do recolhimento, inevitavelmente surgem situações de excedente;
- o § 4º do art. 33 acima reproduzido garante que esses valores retornem ao sujeito passivo, evitando enriquecimento sem causa por parte do Comitê Gestor do IBS e da RFB (CBS).
O princípio da não cumulatividade é justamente o que fundamenta a “restituição dos excedentes”, pois, se não houvesse esse princípio, bastaria aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios (IBS) e à União (CBS) ficarem com tudo o que foi recolhido no split payment, sem qualquer necessidade de devolução do valor excedente.
Todavia, como o IBS e a CBS só podem incidir sobre o “valor agregado” em cada etapa da cadeia relativa ao fornecimento de bens e serviços, por força da não cumulatividade, o excesso pago precisa ser corrigido após a apuração, o que nos permite chegar à conclusão de que o citado § 4.º do art. 33 é uma concretização prática da não cumulatividade no ambiente do split payment.
Por conseguinte, se a lógica é de devolução de valores pagos em excesso, é falacioso sustentar que o ônus econômico tenha sido automaticamente repassado ao consumidor final. O sujeito passivo é quem suporta, em primeiro momento, o impacto do recolhimento, e é justamente por isso que lhe cabe o direito à restituição.
A insistência em qualificar o IBS e a CBS como “tributos indiretos”, cujo encargo seria sempre transferido ao consumidor final, revela-se um anacronismo.
O modelo de não cumulatividade adotado pela Constituição Federal, aliado ao split payment, demonstra que o contribuinte de direito é também, em larga medida, o contribuinte de fato. Se não fosse assim, por que o sistema permitiria a devolução de créditos ao fornecedor, e não ao consumidor final?
Como visto, o art. 38 da LC 214/2025 condiciona a restituição do IBS e da CBS, também, à inexistência do repasse dos créditos do IBS e da CBS para os contribuintes adquirentes.
Isso significa que a restituição dos tributos fica excluída quando a operação é feita com outro contribuinte, pois o destaque no respectivo documento fiscal gera crédito para este, quando adquire bens e serviços cujas operações subsequentes sejam tributáveis pelo IBS e pela CBS.
Diante desse impasse, imaginemos a seguinte situação:
- o contribuinte fornecedor paga IBS e CBS via split payment;
- posteriormente, percebe que houve cobrança indevida ou a maior;
- mas, como destacou os tributos no documento fiscal, o contribuinte adquirente já se apropriou dos créditos relativos a esses tributos.
Nesse caso, o Comitê Gestor do IBS e a RFB (CBS) podem alegar o seguinte: “não cabe restituição, pois houve crédito ao contribuinte adquirente e, por conseguinte, tanto um como o outro teriam de devolver duas vezes”.
Como diz o provérbio: “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”.
Para superar esse impasse, a lógica do sistema exige que o contribuinte fornecedor peça a restituição do tributo indevido ou pago a maior e o contribuinte adquirente seja obrigado a estornar o crédito correspondente.
Trata-se de solução razoável e bem ao alcance do contribuinte fornecedor, uma vez que preserva a não cumulatividade, na medida em que ninguém fica com os créditos do IBS e da CBS cujos fatos geradores não foram validados, viabilizando, portanto, o direito de restituição do contribuinte fornecedor.
Em síntese, o contribuinte fornecedor tem direito à restituição, desde que solicite, “antes de formalizado o pedido ao Fisco”, ao contribuinte adquirente que este estorne os créditos indevidamente apropriados.
Isso reforça, mais uma vez, de que se trata de pura ilusão a noção de que o IBS e a CBS seriam “tributos indiretos”.
Ora, se realmente o consumidor final fosse o “verdadeiro” sujeito passivo, não faria sentido exigir do contribuinte adquirente a devolução de créditos, pois o que se denota é que todo o sistema se estrutura em torno da relação contribuinte x Fisco, e não consumidor final x Fisco. A solução apontada acima, dada a sua razoabilidade, evidencia que o ônus do tributo é do próprio contribuinte e que o “repasse ao consumidor final” é apenas uma construção retórica.
Vejamos mais um argumento que “desmistifica” a tese de que o IBS e a CBS seriam “tributos indiretos” e, portanto, o ônus pelo pagamento desses tributos seria do consumidor final, e não do contribuinte.
Tratam-se das regras previstas no art. 53, caput, e seu § 1.º, da LC 214/2025:
“Art. 53. Os créditos do IBS e da CBS apropriados em cada período de apuração poderão ser utilizados, na seguinte ordem, mediante:
I – compensação com o saldo a recolher do IBS e da CBS vencido, não extinto e não inscrito em dívida ativa relativo a períodos de apuração anteriores, inclusive os acréscimos legais; e
II – compensação com os débitos do IBS e da CBS decorrentes de fatos geradores do mesmo período de apuração, observada a ordem cronológica de que trata o inciso I do parágrafo único do art. 27 desta Lei Complementar; e
III – compensação, respectivamente, com os débitos do IBS e da CBS decorrentes de fatos geradores de períodos de apuração subsequentes, observada a ordem cronológica de que trata o inciso I do parágrafo único do art. 27 desta Lei Complementar.
§ 1.º Alternativamente ao disposto no inciso III, o contribuinte poderá solicitar ressarcimento, nos termos da Seção X deste Capítulo.”
De conformidade com os dispositivos supra, que disciplina a utilização dos créditos acumulados do IBS e da CBS, o contribuinte desses tributos pode:
- compensar créditos com débitos vencidos de IBS/CBS;
- compensar com débitos do mesmo período;
- compensar com débitos de períodos subsequentes;
- alternativamente, solicitar ressarcimento em espécie (pagamento direto pelo Fisco).
Em outras palavras, se ao final da apuração houver saldo credor, o contribuinte não só pode transferi-lo para o período seguinte, como também pode pedir que o Fisco lhe devolva em dinheiro vivo. Trata-se de um genuíno pedido de restituição do IBS e CBS “pagos a maior”.
Essa possibilidade de ressarcimento em espécie mostra que:
- o ônus financeiro inicial do IBS e da CBS recai sobre o contribuinte, que paga (via split payment) e só depois se ressarce;
- O sistema não devolve valores ao consumidor final, mas sim ao contribuinte de direito;
- isso só faz sentido porque é o contribuinte de direito quem efetivamente suporta o pagamento.
Portanto, se o contribuinte pode receber de volta, em espécie, os valores do IBS e da CBS diretamente do Comitê Gestor do IBS e da RFB (CBS), não se pode afirmar, de forma absoluta, que ele “repassa” o ônus desses tributos ao consumidor final. O repasse é, no máximo, um fenômeno econômico parcial, mas juridicamente quem arca com o tributo e tem direito à restituição/ressarcimento é sempre o contribuinte.
O modelo tradicional que sustenta a tese dos “tributos indiretos”, em especial o ICMS e o IPI, parte da ideia de que:
- o “contribuinte de direito” recolhe o tributo;
- o encargo, ou ônus, é transferido no preço da operação ao consumidor final, considerado “contribuinte de fato”;
- por isso, a restituição seria restrita, por força do art. 166 do CTN.
Entretanto, não é o que ocorre em relação ao IBS e à CBS, pois:
- são recolhidos via split payment, diretamente pelo Fisco, antes do contribuinte receber a receita bruta;
- permitem compensação integral de créditos e até ressarcimento em dinheiro;
- tornam o consumidor final juridicamente irrelevante para fins de restituição.
Nesse diapasão, a LC 214/2025 desconstrói a narrativa de tributo indireto: a não cumulatividade plena + ressarcimento mostram que o sujeito passivo é o verdadeiro titular do direito e que o ônus econômico não se confunde com a sujeição tributária.
Resumidamente, o fato de a LC 214/2025 permitir que o contribuinte solicite ressarcimento em espécie de saldos credores acumulados de IBS e CBS demonstra que esses tributos não podem ser classificados como “indiretos” no sentido tradicional. Afinal, quem suporta o desembolso e quem recebe de volta do Comitê Gestor do IBS e da RFB (CBS) é o próprio contribuinte, e não o consumidor final.
Mais grave ainda é a consequência prática das restrições ao pedido de restituição: ao negar a restituição ao contribuinte (sujeito passivo), o Fisco e, lamentavelmente, o Poder Judiciário, impedem igualmente o consumidor final de pleiteá-la. Este não possui acesso ao sistema de compensação ou ressarcimento permitidos pela LC 214/2025, nem legitimidade para propor ações de repetição de indébitos tributários.
O resultado é perverso: tanto o sujeito passivo quanto o consumidor final ficam desprotegidos, e o Fisco se beneficia de uma “receita indevida”, em afronta direta aos princípios da justiça fiscal e da vedação ao enriquecimento sem causa do Fisco.
III – CONCLUSÃO
A Constituição Federal não consagrou, no § 7.º do seu art. 150, o direito à restituição como um detalhe ornamental, mas como um verdadeiro direito fundamental dos sujeitos passivos de tributos.
Transformar essa garantia em “letra morta”, por meio de condicionamentos impraticáveis, é negar vigência ao próprio pacto constitucional. A tributação deve servir ao financiamento do Estado, não à sua locupletação ilícita.
O art. 38 da LC 214/2025, nesse sentido, “precisa ser revisto”, seja pelo legislador, revogando-o por meio de edição de nova lei complementar; seja pelo controle jurisdicional (concentrado ou difuso).
O respeito ao sujeito passivo exige que o instituto da restituição seja preservado em sua inteireza, independentemente da natureza do tributo ou a sua distinção entre “tributo direto” ou “tributo indireto”, de maneira a preservá-lo como instrumento de equilíbrio entre Fisco e sociedade.
Sem isso, estaremos não apenas violando a Constituição Federal, mas perpetuando uma das formas mais inaceitáveis de injustiça: a tributação sem causa e geradora de enriquecimento ilícito dos entes tributantes.
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*JOSÉ RIBEIRO NETO é Advogado Tributarista e Penal-Tributarista, Auditor Fiscal da SEFAZ/CE aposentado, Mestre em Direito Constitucional e Especialista em Direito Público, Constitucional e Tributário. Foi Vice-Presidente do CONAT/CE e Presidente da 2ª Câmara de Julgamento do CONAT/CE, além de Julgador de Primeira e Segunda Instância. É autor dentre outros, dos seguintes livros: “Regulamento do ICMS/CE Integralmente Comentado”, “Direito Tributário & Legislação Tributária do Estado do Ceará – Comentários, Doutrina e Jurisprudência” e “Comentários è Legislação Tributária e Processual-Tributária do Estado do Ceará”, além de inúmeros artigos sobre matéria tributária. No prelo: “Lei Complementar nº 214/2024 Integralmente Comentada”.