Coisa Julgada em Matéria Tributária: um perigoso precedente aberto pelo Supremo Tribunal Federal
Por José Ribeiro Neto
Recentemente, os Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) julgaram dois Recursos Extraordinários, de nºs 949.297 (Tema 881) e 955.227 (Tema 885), decidindo por não validar o trânsito em julgado – coisa julgada material – relativo a ações impetradas por contribuintes contra a cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), que foi considerada inconstitucional em decisão definitiva, em razão de não caber mais recurso, inclusive já com o transcurso do prazo para a impetração de ação rescisória por parte da União Federal, parte vencida nas referidas ações.
Todavia, para o nosso propósito, dada a ausência do acórdão, decidimos por analisar a Tese de Repercussão Geral (RG) – Tema 885, da Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso – relativa aos casos concretos, que envolvem a cobrança da CSLL de duas empresas desde 1992, que arguíram a sua inconstitucionalidade na Instância de Primeiro Grau da Justiça Federal – controle difuso ou incidental –, cujas ações transitaram em julgado, reforçado pela não impetração da ação rescisório no prazo previsto na legislação específica. Vejamo-la:
1. as decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de Repercussão Geral (RG), não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.
2. já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de Repercussão Geral (RG) interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo." (Grifamos.)
Com relação ao “item 1”, a Repercussão Geral (RG) foi instituída pela Lei nº 11.418/2006, que acrescentou os arts. 543-A e 543-B ao Código de Processo Civil de 1973 (Lei nº 5.869/1973), revogado pela Lei nº 13.105/2015, instituindo o novo Código de Processo Civil, De lembrar que o instituto da Repercussão Geral (RG) foi disciplinado pelo art. 1.035 do novo CPC.
Ressalte-se que o STF regulamentou o instituto da Repercussão Geral (RG) previsto no § 3.º do art. 102 da Constituição Federal por intermédio da Emenda Regimental nº 21/2007, estabelecendo-se, assim, como limite a data de 30.04.2007 para a produção dos efeitos da Repercussão Geral (RG).
Isto significa que as decisões do próprio STF em controle incidental de constitucionalidade – controle difuso – não geram impacto direto e imediato sobre as decisões transitadas em julgado, observando-se o princípio da coisa julgada, ainda que se tratem de relações jurídicas tributárias de trato sucessivo, relativo a fatos geradores que ocorrem e geram obrigações mensais ou anuais de pagar tributos, como a própria CSLL, o ICMS – cobrado por períodos mensais –, o IPTU e o IPVA – cobrados anualmente –, etc.
Já no tocante ao “item 2”, a situação é um pouco mais complicada e demanda uma análise aprofundada.
O ponto número um – parafraseando a Natuza Nery – a ser observado é a prevalência do controle de constitucionalidade direto – controle concentrado – e da Repercussão Geral (RG), a partir de 30.04.2007, sobre a coisa julgada anterior, desde que em sentido contrário, hipótese em que o princípio da coisa julgada não mais será observado.
O ponto número dois diz respeito ao aspecto temporal da decisão do STF, caso em que devemos analisar as regras do Direito Intertemporal.
O primeiro aspecto é a não modulação dos efeitos da decisão, produzindo efeitos imediatos após seu trânsito em julgado por meio da respectiva publicação no Diário Oficial, com óbvias repercussões no passado, no presente e no futuro.
Em relação às repercussões pretéritas, lembramos que o “item 2” da Tese de Repercussão Geral (RG) determina a observância ao princípio da irretroatividade. Ora, se é assim, tal significa que não haverá retroatividade da decisão do STF em relação aos contribuintes que obtiveram o trânsito em julgado em relação à cobrança da CSLL, ficando vedado ao Fisco federal cobrar esse tributo com efeitos retroativos, até porque o não pagamento desse tributo foi autorizado pelo próprio Poder Judiciário de forma definitiva.
Em relação às repercussões futuras, o “item 2” determina que deverão ser observados tanto o princípio da anterioridade anual quanto o princípio da anterioridade nonagesimal – ou noventena –, previstos nas alíneas “b” e “c” do inciso III do caput do art. 150 da Constituição Federal, conforme a natureza do respectivo tributo, haja vista que alguns tributos podem ser cobrados no mesmo ano da lei que os aumentou.
Nessa linha de raciocínio, pela Tese da Repercussão Geral (RG), Tema 885, que equiparou a decisão a uma lei ordinária instituidora de tributos, os efeitos da decisão do STF, para os contribuintes que obtiveram o trânsito em julgado em relação ao não pagamento da CSLL, o Fisco federal deverá aguardar o dia 1º.01.2024 para cobrar o tributo devido a partir dessa data, com repercussões também em relação às repercussões presentes.
Assim, aguardemos que o STF, ao publicar o respectivo acórdão, observe o teor de sua própria Tese de Repercussão Geral (RG), enunciada no Tema 885, a qual, mesmo sem a modulação, seus efeitos devem levar em consideração os princípios da irretroatividade, da anterioridade anual e da anterioridade nonagesimal, este último se for o caso.
A nosso sentir, o argumento do nobre relator, Ministro Luís Roberto Barroso, relativo à prevalência do princípio da isonomia tributária sobre o princípio da irretroatividade termina por não se sustentar, em razão do teor do “item 2” da Tese de Repercussão Geral (RG).
De lembrar que o Código Tributário Nacional (CTN) determina, em seu art. 106, que a lei tributária somente poderá retroagir em caso de publicação de lei interpretativa, aquela realizada pelo próprio Poder Legislativo, ou então para beneficiar o infrator da legislação tributária nas condições indicadas nas alíneas “a”, “b” e “c” de seu inciso II.
Além disso, nos termos do inciso XXXV do caput do art. 5.º da Constituição Federal, nenhuma lei deverá excluir da apreciação do Poder Judiciário ações impetradas por quem se sentir lesado ou ameaçado um direito seu, principalmente em matéria tributária, por fazer referência ao princípio do direito de propriedade.
Vejamos o seguinte exemplo hipotético: determinado cidadão brasileiro, não contribuinte do ICMS, inconformado com a cobrança desse imposto por ocasião da importação do exterior do País de um notebook, decidiu impetrar uma ação anulatória, arguindo, incidentalmente, a sua inconstitucionalidade.
A uma, por ferir a própria essência do ICMS, cuja regra matriz de incidência é a saída de mercadorias do estabelecimento de contribuinte, e não a entrada destas no território do ente tributante.
A duas, porque o uso da expressão “entrada no território do Estado ou do Distrito Federal de mercadorias ou bens importados do exterior” não tem lógica e nem sentido, por ferir o princípio da soberania nacional. Ora, os Estados e o Distrito Federal, detentores da competência para instituir o ICMS, não são países soberanos, porém sim unidades político-administrativas do Brasil. Portanto, quaisquer mercadorias ou bens oriundos do exterior do País devem, primeiramente, passar pela fiscalização da Receita Federal, para que, conforme o caso, sejam nacionalizados e liberados, hipótese em que, aí sim, as mercadorias ou bens ficarão à disposição de seus adquirentes.
A três, por fim, porque se trata de flagrante caso de bitributação, vedada peremptoriamente pelo ordenamento jurídico brasileiro, pois a hipótese de incidência do ICMS é a mesma do Imposto de Importação (II) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), ambos de competência da União, distinguindo-se, apenas em relação ao território da entrada das mercadorias ou dos bens: do ICMS, no território do Estado ou do Distrito Federal – o que é equivocado, por ferir o Direito Internacional e a soberania brasileira –; do II e do IPI, no território nacional, o que é o correto.
Digamos que, com a mudança dos componentes do STF, os novos Ministros decidam pela inconstitucionalidade dessa cobrança do ICMS Importação, por se tratar de uma excrescência, pelos argumentos acima apontados, até porque a previsão constitucional – alínea “a” do inciso IX do § 2.º do art. 155 – decorre da Emenda Constitucional nº 33/2001, relativamente às pessoas físicas ou jurídicas não contribuintes do ICMS. Podendo tal dispositivo emendado ser objeto de inconstitucionalidade pelo STF.
Posteriormente, os Ministros do STF decidem, numa outra ação impetrada por algum Estado, que a cobrança é constitucional, mudando o entendimento anterior. Nesse caso, deve-se aplicar efeitos retroativos à decisão anterior do próprio STF, quebrando o princípio da coisa julgada?
Ministro Luís Roberto Barroso – a quem admiro profundamente –, não se trata de proferir, aqui, a frase “perdeu, Mané”, utilizada corretamente contra os bolsonaristas que não se conformaram com a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro nas últimas eleições presidenciais, pois nossas eleições são limpas, transparentes e absolutamente seguras, e as urnas eletrônicas são o nosso orgulho, pois, graças a elas, o Brasil consegue divulgar os resultados das eleições gerais, no máximo, quatro horas após o encerramento das votações.
Trata-se de coisa séria, Ministro: o direito de um contribuinte de se insurgir contra a cobrança de qualquer tributo, caso entenda ser indevido, notadamente quando tal entendimento é confirmado, de forma definitiva, pelo próprio Poder Judiciário, o único com competência para dar a palavra final em ações judiciais. A não ser assim, como ficariam as ações de repetição do indébito tributário, cujo direito está previsto nos arts. 165 e 166 do CTN?
Portanto, reservamos nossas esperanças ao bom senso dos Ministros do STF, no sentido de possibilitar a concretização das regras estatuídas no “item 2” da sua Tese de Repercussão Geral (RG). Tema 885.