Pular para o conteúdo principal

As ideias defendidas nos artigos publicados neste Blog são de responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a posição institucional da Auditece.

 

Publicado em: 01/06/2023

Análise do Projeto de Lei Complementar relativo às transferências de mercadorias e os efeitos da modulação da decisão do STF na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) Nº 49/RN

 

I – COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

Eu costumo dizer que o ICMS, dadas as suas múltiplas facetas e peculiaridades, não é um imposto para amadores, pois até mesmo os Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) tomam decisões cuja emenda sai pior do que o soneto, ou, o que é mais grave ainda, que afrontam acintosamente a Constituição Federal. Mas isso é matéria para um outro artigo!

Relativamente às transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, sejam nas operações internas ou nas interestaduais, tal questão já foi pacificada pela jurisprudência reiterada tanto do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em especial com a edição da Súmula STJ nº 166, como do STF, inclusive com sede de repercussão geral – Tema nº 1.099/STF –, no julgamento do ARE nº 1.255.885, em 15.08.2020.

De ressaltar que a Súmula STJ nº 166, a qual determinava que “não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”, foi publicada antes da entrada em vigor da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir), que dispõe sobre as regras gerais do ICMS, cujo inciso I do seu art. 12 estabelece “que o fato gerador do imposto ocorreria no momento da saída da mercadoria, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”.

Nada obstante tal previsão legislativa, em agosto de 2010, já em plena vigência da Lei Kandir, quando da apreciação do Recurso Especial nº 1.125.133/SP, submetido à sistemática dos recursos repetitivos, o STJ confirmou a orientação contida na citada Súmula STJ nº 166.

Levada a questão ao STF, quando do julgamento do AI 682.680 AgR, do ARE 769.582 AgR, do ARE 764.196 AgR e do ARE nº 1.255.885, este último julgado na data de 15.08.2020 – Tema STF nº 1.099 –, foi reconhecida a inconstitucionalidade da exigência do ICMS nas simples transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, tanto nas operações internas quanto nas interestaduais.

Na esperança de reverter as reiteradas decisões do STF – e, por consequência, as decisões também do STJ –, o Estado do Rio Grande do Norte, por intermédio do Chefe do Poder Executivo, impetrou a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49/RN, cuja decisão referendou a inconstitucionalidade da incidência do ICMS nas operações de transferências internas e interestaduais de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.

No mérito da ADC, os Ministros confirmaram a inconstitucionalidade em questão, o que ensejou a impetração dos Embargos de Declaração pelo Estado do Rio Grande, solicitando a modulação dos efeitos da decisão do STF, os quais foram acatados parcialmente no tocante à produção dos efeitos, com eficácia a partir de 1º de janeiro de 2024, bem como na questão do disciplinamento dos créditos dos contribuintes que remeteram as mercadorias em transferência para seus estabelecimentos situados em outros Estados.

Com a finalidade de solucionar a questão dos créditos do ICMS, bem como a questão do aproveitamento dos benefícios e incentivos fiscais relativos ao ICMS, está em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei Complementar nº 332/2018, alterando dispositivos da Lei Complementar nº 97/2018, que dispõe sobre as regras gerais do ICMS.

Ante às premissas supra, o presente artigo busca analisar uma proposta de subemenda apresentada pela Senadora Kátia Abreu ao referido projeto, concernente à manutenção dos créditos do ICMS e ao aproveitamento dos benefícios e incentivos fiscais dos contribuintes do imposto.

 

II – MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO DA ADC STF Nº 49/EN E AS SUAS REPERCUSSÕES

Analisados os Embargos de Declaração impetrados pelo Estado do Rio Grande do Norte opostos na ADC STF nº 49/RN, 19.04.2023, os Ministros do STF, na data de 19.04.2024, relativamente à  pertinência e à extensão da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Complementar nº 87/1996 que previam a incidência do ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, proclamaram, finalmente, o tão aguardado resultado dos embargos.

Tendo em vista a procedência parcial dos Embargos de Declaração, foi modulado os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, nos termos do voto do Ministro Edson Fachin, os quais passarão a vigorar a partir de 1º de janeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais que estavam pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento do acórdão que analisou o mérito do tema, o que ocorreu em 04.05.2021.

Da lavra do Ministro Edson Fachin, a modulação deu-se da seguinte forma:

No cenário de busca de segurança jurídica na tributação e equilíbrio do federalismo fiscal, julgo procedentes os presentes embargos para modular os efeitos da decisão a fim de que tenha eficácia pró-futuro a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito. Exaurido o prazo sem que os Estados disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, fica reconhecido o direito dos sujeitos passivos de transferirem tais créditos."

Com base no acima transcrito, podemos tirar as seguintes conclusões:

  • fica patente a preocupação dos Ministros do STF em preservar a segurança jurídica, porém, permitindo aos Estados e ao Distrito que disciplinem as transferências dos créditos do ICMS relativos às transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte;
  • os efeitos da decisão da inconstitucionalidade da cobrança do ICMS nas operações de transferências de mercadorias somente gozarão de eficácia a partir de 1º de janeiro de 2024;
  • deverão ser ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito da ADC STF nº 49/RN (04.05;2021).

Não se pode olvidar as repercussões econômico-financeira e tributárias advindas da decisão do STF, tanto no mérito da ADC STF nº 49/RN quanto na parcial procedência dos Embargos de Declaração, as quais poderíamos sintetizar a seguir:

  1. a partir de 1º.01.2024, as operações de transferências interestaduais de mercadorias para estabelecimento do mesmo contribuinte deverão correr SEM a incidência do ICMS. Nesse caso, em razão do falta de destaque do imposto no respectivo documento fiscal – Nota Fiscal Eletrônica (NF-e), por exemplo –, o estabelecimento que receber as mercadorias em transferência NÃO poderá se creditar nessas operações, devendo, portanto, se debitar do ICMS integral – SEM a dedução dos créditos, portanto – nas operações subsequentes por ele realizadas, salvo se ocorrer novas operações de transferências de mercadorias ou se adquirir mercadorias tributadas pelo ICMS no próprio Estado onde estiver localizado;
  2. relativamente aos contribuintes que deixaram de se debitar do ICMS nas transferências de mercadorias nas operações interestaduais, os quais estão com processos administrativos ou judiciais pendentes de conclusão até 04.05.2021, deverão manter os créditos relativos às suas operações anteriores, sejam decorrentes das aquisições de insumos utilizados no processo industrial, sejam de mercadorias para posterior comercialização, tal como ocorre nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do contribuinte situados no mesmo Estado. É assim tendo em vista que o princípio da não cumulatividade é operacionalizado considerando todas as operações realizadas no período de apuração, após o que serão considerados os créditos e os débitos auferidos no referido período mensal, técnica de apuração denominada “Conta Gráfica do ICMS”. ;
  3. nesse sentido, os Fiscos estaduais e o do Distrito Federal NÃO poderão exigir o estorno dos créditos, haja vista que estes deverão ser compensados com os débitos decorrentes das demais operações subsequentes, a exemplo das vendas internas ou para o exterior do País;
  4. em relação aos contribuintes que forem detentores de benefícios ou incentivos fiscais, sejam oriundos de convênios ou protocolos editados pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), sejam quando concedidos por atos normativos respaldados pela Lei Complementar nº 160/2017, ao efetuarem transferências de mercadorias para outros estabelecimentos de sua propriedade situados em outros Estados sem a incidência do ICMS, NÃO poderão aproveitar os respectivos benefícios ou incentivos fiscais, haja vista a não incidência do imposto nessas operações interestaduais. No caso de um contribuinte do ramo industrial, detentor dos benefícios do ICMS concedidos pelo Fundo de Desenvolvimento Industrial (FDI), instituído pela Lei cearense º 10.367/1979, não lhe será permitido utilizar as operações de transferências interestaduais dos produtos industrializados nos cálculos do benefício do FDI, que exige que haja a tributação do imposto nas operações subsequentes.

Portanto, percebe-se que a decisão do STF na ADC nº 49/RN, mesmo com a modulação dos efeitos, traz repercussões nas operações pretéritas, presentes e futuras, resultando em prejuízos tanto para os Fiscos estaduais quanto para os contribuintes., quando detentores de benefícios ou incentivos fiscais.

Denota-se, portanto, que nos deparamos com várias distorções, as quais precisam ser solucionadas, a bem da segurança jurídica e da Justiça. É o que nos parece está ocorrendo no Senado Federal na elaboração do Projeto de lei Complementar nº 332/2018, objeto de nossa análise a seguir.

 

III – PROJETO DE LEI DO SENADO (PLS) Nº 332/2018 – SUBEMENDA APRESENTADA PELA SENADORA KÁTIA ABREU

Encontra-se em tramitação no Senado Federal, desde 2018, o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 332/2018, com o objetivo de alterar dispositivos da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir), com a finalidade de disciplinar a não incidência do ICMS nas operações de transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.

Após a modulação dos efeitos da decisão da ADC STF nº 49/RN, em razão do acolhimento parcial dos Embargos de Declaração impetrados pelo Estado do Rio Grande do Norte, a Senadora Kátia Abreu apresentou, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, uma subemenda à emenda nº 2-PLEN, que altera o art. 1.º do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 332/2018.

A subemenda em questão traz a seguinte redação:

Art, 12. (...)

I – da saída de mercadorias do estabelecimento de contribuinte;

(...)

§ 4.º Não se considera ocorrido o fato gerador do imposto na saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte para outro estabelecimento do mesmo titular, mantendo-se integralmente o crédito tributário em favor do contribuinte que decorre dessa operação.

§ 5.º Alternativamente ao disposto no § 4.º deste artigo, fica o contribuinte autorizado a fazer a incidência e o destaque do imposto na saída de seu estabelecimento para outro estabelecimento do mesmo titular, hipótese em que o imposto destacado na saída será considerado crédito tributário pelo estabelecimento destinatário.”

No tocante à nova redação dada ao inciso I do caput do art. 12 da Lei Complementar nº 87/1996, denota-se que foi suprimida a expressão ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, que constava na redação original, de sorte a evitar a incidência do ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, o que foi complementado pelo § 4.º supra, acrescentado ao art. 12 da citada Lei Complementar nº 87/1996.

Além dessa complementação, o citado § 4.º assevera, aos contribuintes, o direito à manutenção dos créditos do ICMS pago nas operações anteriores pelo estabelecimento que remeteu mercadorias em transferência para outros estabelecimentos de sua propriedade, sejam decorrentes das aquisições de insumos utilizados no processo industrial, sejam de mercadorias para posterior comercialização, tal como já ocorre nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do contribuinte situados no mesmo Estado.

É assim tendo em vista que o princípio da não cumulatividade é operacionalizado considerando todas as operações realizadas no período de apuração, após o que serão considerados os créditos e os débitos auferidos no referido período mensal, técnica esta denominada “Conta Gráfica do ICMS”.

Trata-se, portanto, de disposição redundante, porém, necessária, para evitar interpretações ambíguas.

Todavia, relativamente ao conteúdo do § 5.º supra, também acrescentado ao art. 12 da Lei Complementar nº 87/1996, entendemos que se trata de uma verdadeira excrescência jurídico-constitucional.

A uma, porque concede aos contribuintes do ICMS o direito de, ao seu bel prazer, decidirem quais operações deverão sofrer a incidência ou não do imposto, quando das transferências internas ou interestaduais de mercadorias. Com isso, permuta-se o critério jurídico-constitucional, o único cabível nessa matéria, pelo critério econômico-financeiro, num verdadeiro estímulo ao planejamento tributário.

A duas, porque distorce, completamente, o instituto da não incidência tributária, pois atribui aos contribuintes a condição de legislador, usurpando a competência dos membros do Congresso Nacional de editar lei complementar para definir as hipóteses de incidência dos impostos, além de suas bases de cálculo e de seus contribuintes, conforme art. 146, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal,

Ora, ao atribuir aos contribuintes a competência para decidirem quais operações de transferência de mercadorias deverão sofrer a incidência do ICMS, concede-se a esses contribuintes a competência para definir um novo fato gerador, uma nova hipótese de incidência, com todas as consequências que poderão advir dessa nova situação jurídica, investindo-se do poder discricionário, para atender os interesses econômicos e financeiros desses contribuintes.

 

IV – SOLUÇÃO DO PROBLEMA

Em artigo de nossa autoria intitulado “A Inconstitucionalidade da Cobrança do ICMS nas Transferências de Mercadorias e a Necessidade de Emenda Constitucional”, publicado no livro “Novos Tempos do Direito Tributário”, Curitiba/PR: Editora Íthala, 2020, pp. 149-162, com patrocínio da Ordem, dos Advogados do Brasil, Seção Ceará, tendo em vista as repercussões econômico-financeiras e tributárias entre a unidade federada de destino e de origem, com consequências, inclusive, na repartição do ICMS em favor dos Municípios, nada obstante concordarmos com a decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da inconstitucionalidade da cobrança do ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, situados ou não na mesma unidade da Federação, sugerimos a edição de emenda constitucional, com a finalidade de evitar prejuízos econômico-financeiros e tributários suportados pelas unidades federadas de origem, sugerimos a edição de emenda constitucional, objetivando contornar o problema, conforme transcrição abaixo:

No tocante às transferências de mercadorias realizadas dentro do próprio Estado, reforçamos o entendimento de que o ICMS não deve incidir nessas operações, haja vista a ausência de qualquer prejuízo quanto ao recolhimento do ICMS em favor desse Estado.

Entretanto, em relação às transferências de mercadorias de um estabelecimento de contribuinte, situado em determinado Estado, para outro estabelecimento de propriedade desse mesmo contribuinte, porém localizado em outro Estado, é evidente que haverá prejuízo de natureza financeira, social e na arrecadação do ICMS no Estado de origem.

E com um agravante: ainda que as mercadorias, produtos ou insumos saiam do estabelecimento sem a incidência do ICMS, os créditos ficam mantidos, haja vista que, juridicamente falando, não ocorreu a "saída" dessas mercadorias, produtos acabados ou insumos, em razão de não ter havido a mudança de titularidade.

Por conseguinte, além de transferir as mercadorias, produtos acabados ou insumos para outros estabelecimentos de sua propriedade, situados em outras unidades da Federação, esse mesmo contribuinte ainda teria o direito à manutenção dos créditos relativos às aquisições de mercadorias ou insumos utilizados no processo industrial, os quais podem ser compensados com os débitos do imposto oriundos das vendas de mercadorias nas operações internas e interestaduais, tendo como consequência a redução do valor do ICMS a recolher em favor desse mesmo Estado, isto se a Conta Gráfica do ICMS não resultar em saldo credor, hipótese em que não haverá recolhimento do imposto nesse período.

Veja-se o exemplo: determinado estabelecimento industrial, situado no Estado do Ceará, transfere o produto acabado para um outro estabelecimento do ramo varejista localizado no Estado do Rio de Janeiro.

Com base na decisão do STF, o Estado de situação do estabelecimento industrial, nada obstante todos os custos por ele bancados, inclusive a manutenção dos créditos do ICMS nas aquisições dos insumos, não teria direito a qualquer parcela do ICMS, pois este ficaria integralmente no Estado onde está localizado o estabelecimento do mesmo contribuinte, por ocasião das operações subsequentes.

É óbvio que se trata de uma situação idêntica àquela que motivou a aprovação da Emenda Constitucional nº 87/2015, em razão da repercussão econômica, social e, até mesmo, fiscal.

De outra sorte, cabe lembrar que o contribuinte, proprietário de ambos os estabelecimentos, não teria qualquer prejuízo, haja vista que, em razão do destaque do ICMS na NF-e de transferência emitida pelo estabelecimento industrial, o estabelecimento varejista poderá se creditar desse imposto em sua Conta Gráfica do ICMS, cuja consequência seria zerar o imposto contabilmente.

Além disso, quando das aquisições de insumos utilizados no processo produtivo – estabelecimento industrial – ou das aquisições mercadorias para revenda – estabelecimento comercial –, o ICMS destacado nos documentos fiscais de aquisição será aproveitado como crédito do imposto, independentemente das saídas das mercadorias em transferência.

Portanto, o estabelecimento das mercadorias em transferência credita-se do ICMS destacado nos documentos fiscais de aquisição, levando-o a crédito em sua Conta Gráfica do ICMS, o qual será compensado com o valor do ICMS levado a débito, zerando o saldo por praticamente não haver agregação, e ainda permite ao estabelecimento recebedor das mercadorias creditar-se do ICMS destacado nos documentos fiscais quando das operações de transferência.

Em síntese, ocorreria, financeira e contabilmente falando, um ganho extra para o contribuinte que efetuou a transferência interestadual de mercadorias, em decorrência da redução do ICMS a recolher ou a sua não existência, por força do saldo credor.

Com base nas premissas supra, e no intuito de seguir os mesmos princípios que levaram os membros do Congresso Nacional a aprovarem a Emenda Constitucional nº 87/2015, sugerimos a seguinte proposta de emenda à Constituição Federal:

“EMENDA CONSTITUCIONAL Nº __, de _______ de 20__

Altera o § 2.º e acrescenta o § 2.º-A ao art. 155 da Constituição Federal

 

As mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3.º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:

 

Art. 1.º O art. 155 da Constituição Federal passa a vigorar com o acréscimo dos incisos XIII e XIV ao § 2.º e acréscimo do § 2:º-A:

Art. 155. (...)

(...)

§ 2.º (...)

(...)

XIII – nas operações de transferência de mercadorias, inclusive insumos destinados ao processo produtivo de estabelecimento industrial, de um estabelecimento de contribuinte para outro de sua propriedade, situado em outra unidade da Federação, haverá a incidência do imposto quando devido, hipótese em que aplicar-se-á a correspondente alíquota interestadual; (NR)

XIV – na hipótese do inciso XIII, caberá ao estabelecimento recebedor das mercadorias transferidas creditar-se do imposto destacado no respectivo documento fiscal. (NR)

§ 2.º-A. Caberá à lei complementar definir as condições para que os estabelecimentos dos contribuintes, tanto os situados na unidade federada de origem como os situados na unidade federada de destino, mantenham os créditos do imposto pago nas operações e prestações anteriores, conforme o caso. (NR)

Art. 2.º Ficam convalidados o inciso I do caput do art. 12, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, e os dispositivos correspondentes das leis ordinárias dos Estados e do Distrito Federal, referentes ao momento da ocorrência do fato gerador do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), bem como a apropriação dos créditos auferidos pelos contribuintes da unidade federada de origem e de destino.

Art. 3.º Essa Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, em __ de _________ de 20__.

(...).”

 

Assim, com a proposta de emenda constitucional acima, a decisão do STF em questão perde efeito, em decorrência de norma constitucional superveniente.

A constitucionalização superveniente decorre, no contexto deste artigo, de uma alteração no texto da Constituição Federal por meio de emenda, a qual, inovando o direito, passa a considerar constitucional uma determinada matéria, prevista originariamente em lei complementar da União, bem como seus dispositivos correlatos, reproduzidos em leis ordinárias dos Estados e que foram declarados inconstitucionais por decisão do STF.

No caso deste artigo, indaga-se o seguinte: com a alteração na Constituição Federal, possibilitando a incidência do ICMS nas operações interestaduais relativas às transferências de mercadorias, o inciso I do caput do art. 12 da Lei Complementar nº 87, de 13.09.1996, assim como o dispositivo que o reproduziu nas respectivas leis ordinárias dos Estados, podem ser convalidados, com produção de efeitos jurídicos a partir da entrada em vigor da emenda constitucional?

Não se pode negar, jamais, a extrema gravidade das normas editadas com flagrante afronta à Constituição Federal, posto que absolutamente inválidas, mas que, todavia, produziram efeitos jurídicos, pois que não declarada, ainda, a sua inconstitucionalidade.

Em artigo publicado na Internet, Melina Breckenfeld Reck, relativamente à constitucionalização superveniente, assim se manifesta:

“Sendo inegável que as emendas constitucionais, editadas nos limites que lhes são impostos pela própria Constituição, implicam modificações e não substituição ao quadro constitucional anterior, pode-se dizer que servirão, dali por diante, como bom fundamento de validade para as normas produzidas em sua consonância.

Destarte, tratando-se de vício insanável, inconvalidável, não é possível cogitar a possibilidade de a reforma constitucional recepcionar leis originariamente inconstitucionais, tampouco convalidar, sanar tal vício seja retroativa, seja prospectivamente, mesmo porque, reitere-se, trata-se da mais grave invalidade que pode ser verificada no ordenamento jurídico.

Não havendo convalidação prospectiva nem retroativa, o único caminho possível é o legislador, após a promulgação da emenda constitucional, iniciar o processo legislativo para aprovar lei com o conteúdo daquela que se apresentava inconstitucional antes da Emenda.”

 

A nosso sentir, data vênia do entendimento tão bem fundamentado da douta advogada do escritório Clèmerson Merlin Clève – Advogados Associados, defendemos a tese de que tanto o inciso I do caput do art. 12 da Lei Complementar nº 87/1996, bem como o dispositivo das respectivas leis ordinárias dos Estados que o reproduziu, podem SIM ser convalidados, entretanto, com efeitos jurídicos nos termos do art. 2º da emenda constitucional por nós proposta.

Com efeito, não seria razoável exigir do legislador congressual que edite uma lei complementar tão somente para alterar o texto da Lei Complementar nº 87/1996 e reproduzir, integralmente, o mesmo texto do inciso I do caput do art. 12 da referida lei, e nem exigir, dos legisladores estaduais, a edição de lei ordinária para também reproduzir o mesmo texto do dispositivo equivalente nas respectivas leis ordinárias.

Basta que seja consignada, abaixo dos respectivos dispositivos e entre parênteses, a expressão “dispositivo convalidado pela Emenda Constitucional nº __, de ____”.

Ora, com a alteração determinada pela emenda constitucional em questão, que passou a veicular a possibilidade de incidência do ICMS nas operações interestaduais de transferência de mercadorias, passando os dispositivos acrescentados a integrarem o texto constitucional, a decisão do STF, acima apontada, perde seus efeitos jurídicos a partir da vigência da emenda constitucional: o que antes não estava previsto, passou a sê-lo posteriormente, e no próprio texto constitucional.

Indaga-se, de outra sorte, se a nossa proposta não estaria afrontando a tese da circulação jurídica das mercadorias, com a óbvia mudança de titularidade como uma das regras matrizes de incidência do ICMS. Seria faltar com a verdade negar esse raciocínio lógico-jurídico!

Entretanto, como a Constituição Federal, em relação ao ICMS, estabeleceu proposições, a nosso sentir, verdadeiramente equivocadas, a exemplo da inclusão do valor do ICMS em sua própria base de cálculo – art. 155, § 2º, inciso XII, alínea “i” –  e a incidência desse imposto na importação de bens do exterior do País por não contribuintes – art. 155, § 2º, inciso IX, alínea “a” –, a proposta de emenda constitucional por nós sugerida seguiria o mesmo princípio.

Porém, cabe lembrar que a nossa proposta possui um atenuante: não causa, absolutamente, nenhum prejuízo financeiro aos contribuintes, como demonstramos acima, na medida em que ocorre a recuperação do ICMS, debitado nas notas fiscais de transferência de mercadorias, por meio do aproveitamento, como crédito, desse mesmo valor em Conta Gráfica do ICMS, ainda que pelo estabelecimento da unidade da Federação de destino.

Portanto, entendemos que, com a edição de emenda constitucional, restaria solucionada a problemática das transferências de mercadorias entre os estabelecimentos do mesmo contribuinte localizados em unidades federadas diversas, sem necessidade de usurpar a competência dos membros do Congresso Nacional para, por meio de lei complementar, definir, como hipótese de ICMS, as transferências interestaduais de mercadorias, inclusive insumos destinados ao processo industrial.

 

Autores
José Ribeiro Neto
Tributação