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Publicado em: 05/09/2016

Cargos comissionados no comando de carreiras de Estado: riscos e consequências

Por Luciana Moscardi Grillo*

A crise econômica que atinge o país especialmente ao longo dos dois últimos anos, associada à crise política deflagrada pela exposição do alto grau de corrupção governamental, lançou sobre as administrações públicas o desafio da realização de uma política orçamentária transparente e responsável.

 

Não obstante, o que se tem verificado, por parte dos agentes políticos responsáveis pela gestão fiscal, é uma postura conservadora e equivocada que, antes de proceder a uma análise criteriosa sobre rubricas áridas, tais como renúncias fiscais, aparelhamento estatal, e redefinições emergenciais do sistema tributário, optam por manter o foco da crise nas despesas de pessoal, sustentando que o arrocho salarial de servidores seria a resposta para o controle efetivo da realização orçamentária.

Essa visão limitada e falaciosa tem gerado, no âmbito do serviço público, um ambiente desmotivador que potencializa as crises institucionais e, por via de consequência, afeta negativamente a sociedade, destinatária dos serviços públicos de forma geral.

Nesse contexto desagregador, algumas carreiras têm visualizado na entrega de funções de confiança um importante mecanismo de mobilização sindical, mediante o qual servidores de carreira concursados, que por sua reconhecida capacidade técnica, de liderança e de gestão, foram designados para o exercício de funções de comando no âmbito das administrações públicas, manifestam massivamente a intenção de deixar tais postos de trabalho, como reflexo do desrespeito governamental.

Contudo, a ação legítima que visa a constituir um alerta ao agente político, no sentido de garantir um nível mínimo de governabilidade institucional, tem dado ensejo a um oportunismo calculado que, para além de ignorar comandos constitucionais que regem a administração pública, põe em risco princípios basilares do Estado Democrático, ao defender, para a ocupação de postos estratégicos de comando das instituições, a livre nomeação de pessoas estranhas aos quadros de carreiras técnicas.

Em recente entrevista concedida a Globonews sobre a tramitação do projeto de lei de renegociação das dívidas dos Estados, o ex-Secretário da Fazenda de São Paulo, Renato Villela, externou preocupante pensamento, no sentido de que gostaria de conceder o comando da Administração Tributária paulista a pessoas de sua confiança, e não a auditores que, simplesmente por terem colocado “x” de forma correta em uma prova, detinham a prerrogativa legal de exercer tais funções.

No dia 24 de agosto, a Assembleia Legislativa do Espírito Santo foi muito além do plano das hipóteses, e aprovou o PLC 15/2016, de autoria do Governador Paulo Hartung (PMDB), que torna de livre nomeação os cargos em comissão na Secretaria da Fazenda do Estado capixaba, que anteriormente tinham provimento privativo por auditores fiscais.

Cabe esclarecer que cargos de provimento em comissão são específicos de direção, comando ou chefia de certos órgãos, onde um agente de confiança da autoridade nomeante é designado para promover a direção superior da Administração, sob sua orientação. A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho prescreve que o vínculo existente entre o ocupante de cargo comissionado e o ente público não é empregatício, e sim administrativo, de caráter precário e transitório, com possibilidade de exoneração sem causa.

Seu vínculo, portanto, dá-se para com o agente político que o designa, e exatamente por esse motivo, diante da potencial ingerência política sobre tais funções estratégicas, trata-se de uma exceção constitucional, exigindo que legislação específica determine expressamente quais as funções e os cargos de confiança poderão ser providos por pessoas estranhas ao funcionalismo.

Não obstante, a burla à Magna Carta, no Brasil, tornou-se algo tão corriqueiro, que não cumpre simplesmente constatar um ato por inconstitucional, mas demonstrar a arbitrariedade jurídica a que se sujeitará o Estado de Direito diante de tal afronta.

Imagine-se a política tributária de um Estado exposta a alterações, não de caráter técnico, mas balizadas por influência política direta de grupos específicos que, ao se alternarem no poder, terão a prerrogativa de determinar, desde alíquotas aplicáveis a determinados bens, até a eleição de contribuintes para fins de fiscalização. Não se trata de orientação de política tributária, esta certamente emanada do governo eleito, mas de gestão cotidiana dessa política, interpretação das leis, operacionalização de ações fiscais, acesso a informações sigilosas, análise de indicadores e dados contábeis, de dar efetividade a ações de cobrança e atuar no exercício legal da política tributária.

Qual é o nível de segurança jurídica de uma empresa para eleger sua sede de negócios e identificar formas sólidas de investimentos, sabendo da permeabilidade da gestão política perante suas obrigações tributárias, e de sua vulnerabilidade, na medida da alternância de grupos de poder? O que poderia uma empresa contra um concorrente que detenha o apoio político de um governo? Qual a efetividade de mecanismos como denúncias, consultas prévias, orientação técnica, contestações, se a análise de procedimentos estiver sujeita a um parecer não técnico, e a uma visão particular, não vinculada, transitória?

Qual é o grau de comprometimento, ou mesmo de responsabilidade funcional atribuível a um agente que, para além de não deter o conhecimento técnico necessário para o exercício de uma função, sujeita-se às pressões políticas de seu patrono, e ali permanecerá somente pelo tempo em que atender às expectativas do mesmo, sem qualquer vínculo de continuidade? Pode-se garantir aos contribuintes o sigilo fiscal de suas operações, ou sobre as informações prestadas ao Fisco?

Ademais, há que se perquirir os objetivos dessa flexibilização dos comandos constitucionais. Cria-se um temerário paradigma. Quanto tempo até que a decisão de que funções de comando possam ser ocupadas por comissionados se popularize perante as demais carreiras de Estado? Quantos passos até que as alterações legislativas batam às portas da Receita Federal do Brasil, do Ministério Público, Procuradorias, Defensorias Públicas, Polícia Federal, das demais Polícias, e mesmo do Poder Judiciário?

O bom senso popular prediz, quando há perguntas demais, a resposta é simples: servidores públicos servem ao Estado e à sociedade. Comissionados servem a um governo.

O sucateamento das Administrações Tributárias constitui um duríssimo golpe contra a sociedade, na medida em que, ao favorecer a sonegação fiscal, impede o ingresso de receitas nos cofres públicos, comprometendo a realização de políticas sociais, alimentando a concorrência desleal, que beneficia agentes econômicos específicos, detentores de força política e financeira para fazer prevalecer interesses particulares, em detrimento de interesses públicos, e promovendo o financiamento da corrupção, esse mal enraizado na conduta política nacional, capaz de impedir o desenvolvimento financeiro e social sustentável do país.

*Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo desde 1998, é formada em Engenharia Civil pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e Bacharel em Direito, pela Instituição Toledo de Ensino, ambas em Bauru – SP. Pós graduação:  Máster Internacional en Hacienda Pública, Dirección y Administración Tributaria, pelo Instituto de Estudios Fiscales de la Universidad Nacional de Educación a Distancia de España. Na Secretaria da Fazenda de São Paulo, exerceu a fiscalização direta de tributos e outras funções administrativas, atuando durante mais de sete anos como Delegada Tributária de Julgamento.

Fonte: Jornal Carta Forense