Precisamos compreender o mais novo eufemismo transvestido de 'reforma' da Previdência (PEC 287/2016), que mais se assemelha a uma panaceia universal às avessas. Para os alquimistas, a panaceia era a fórmula ideal contra os males da sociedade. Para os nossos alquimistas-políticos, a fórmula às avessas não chega a um denominador comum. Longe de atingir a perfeição, penaliza a classe trabalhadora.
A fórmula ideal, eu diria, começa com um diagnóstico minucioso de onde vêm e para onde vão os recursos da Previdência, que, em parte, passam longe do bolso do contribuinte e se destinam a cobrir o rombo de juros da dívida pública.
A tentativa de limpar esse desfalque nas contas públicas encontra uma solução paliativa via Desvinculação de Receitas da União (DRU), um mecanismo no qual 30% do orçamento previdenciário é desviado para amenizar o rombo da dívida. Isso abre caminho para que o Estado utilize os recursos livremente para pagamento de despesas (provenientes de tributos federais associados por lei via fundos ou despesas) que considera mais relevantes.
Está claro que uma reforma é necessária pela somatória de alguns fatores: o primeiro deles é o já esperado envelhecimento populacional com aumento projetado de 13,44% em 2030, de acordo com o IBGE; o segundo é a combinação de juros e resultado primário, que explica o aumento da dívida pública e demonstra a necessidade de financiamento do setor público (gráfico 1) como eixo condutor de políticas sociais de onde se define as prioridades dos gastos públicos.
Entretanto, o remédio encontrado para sanar as cicatrizes expostas pelos efeitos da crise econômica foi penalizar a classe trabalhadora, enxugando seus direitos sociais, visto que afirmações de que a Previdência apresenta déficits não são condizentes com a verdade. De acordo com estudo realizado pela Anfip (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), no acumulado de 2015, o total de receitas com seguridade social atingiu o montante de R$694,4 bilhões e um saldo positivo de mais de R$11 bilhões em relação ao total de despesas de 2015 (R$683,1 bilhões), um acréscimo de R$ 6,7 bilhões em relação às receitas de 2014. Os dados não mentem: a previdência não é deficitária.
Não mentem também para o ex-ministro e ex-governador do Ceará, Ciro Gomes, que afirma ser uma audácia acreditar no possível déficit da Previdência. “É só fazer uma conta simples: a soma dessas receitas menos as despesas do presente exercício mostram que a Previdência ainda tem um pequeno superávit”, disse em entrevista ao Portal InfoMoney, acrescentando ser necessário contabilizar ao resultado da Seguridade Social, a receita contributiva do Confins, PIS/Pasesp e CSLL para ver que a conta fecha.
Também a justificativa baseada no avanço da expectativa de vida do brasileiro, que subiu para faixa dos 75,5 anos em 2015, um aumento de 3 meses e 14 dias em relação ao valor estimado para o ano de 2014 (75,2 anos), segundo o IBGE tem muito pouco a nos dizer. Não precisamos ir muito longe para perceber isso.
Em uma pesquisa sobre o ‘Mapa da Desigualdade de 2015’, realizada pela Rede Nossa São Paulo, ONG localizada na capital paulista, a expectativa de vida de um residente no bairro de Alto de Pinheiros alcança a média de 79,67 anos. Enquanto que a população de Cidade Tiradentes configura o menor tempo médio de vida, 53,85 anos. São 25 anos a menos de expectativa de vida se comparado com o bairro anterior.
Hipoteticamente, se a medida vier a ser promulgada, aquele residente da Cidade Tiradentes, acolhido pela informalidade, consequentemente não vai conseguir comprovar o tempo de contribuição necessário de, no mínimo, 25 anos. Soma-se a isto a escassez de recursos básicos como saúde, educação e saneamento básico, que contribui para uma expectativa tão baixa. O resultado evidencia as desigualdades existentes em um país periférico como o nosso, que cooperam para que o indivíduo marginalizado trabalhe até o final da vida.
Em síntese, a nova medida modificará diversas regras previdenciárias – e isto inclui os servidores públicos –, estabelecendo uma idade mínima geral de 65 anos para aposentadoria, aumento de 15 para 25 anos no tempo de contribuição e obrigatoriedade de 49 anos para acesso ao benefício integral.
Enxugamento dos diretos sociais
A deformidade desta reforma afasta da agenda econômica o desafio da concretização dos direitos sociais no seio da economia capitalista contemporânea, muito embora houvesse, por meio da seguridade social, uma estratégia do neoliberalismo de implementar políticas sociais que dissipem desigualdades entre os indivíduos (na tentativa de investir ao longo dos anos em programas sociais de combate à pobreza).
Visualizamos ainda uma hipertrofia do capital financeiro, tangenciada pela supremacia das políticas de ajuste fiscal. Isto porque a paralisação econômica ante a baixa produtividade nos evidencia o que Karl Max, em O Capital, já afirmava. É apenas na esfera da produção que o valor é criado, embora a realização deste valor só se dê na circulação do bem ou serviço. Com o desemprego em níveis alarmantes e a produtividade industrial em queda, o contribuinte tardaria muito mais para cumprir o tempo necessário de contribuição, e, mesmo que se aposentasse, teria apenas 6 meses subsequentes de sobrevida (cruzando dados da OMS e ONU), como apresenta Perrucci, em artigo “O que não te contaram sobre a Reforma da Previdência”.
Como resultado disso, vemos uma tendência ao “desfinanciamento dos direitos sociais, em proveito do pagamento do refinanciamento do serviço da dívida pública”, como aponta o artigo “Seguridade Social em tempos de crise do capital”. Um exemplo seria a Pec do Teto dos Gastos (55/2016), aprovada e promulgada pelo Congresso, que limita os gastos essenciais com saúde e educação, etc.
A finalidade dessas práticas é cobrir o rombo com pagamentos dos juros da dívida pública, e como a previdência social é uma fonte de recurso, juntamente com emissão de moeda e aumento da carga tributária, a tendência é um enxugamento das políticas de assistência social, incluindo a previdência.
Também a carga tributária onera a classe trabalhadora. Podemos observar, no gráfico 2, que do montante de 32,42% verificado em 2014, 8,4% corresponde à folha de salários, que inclui previdência, um aumento de 3 pontos percentuais em relação ao ano de 2006. Se comparado com outros países da OCDE, a carga tributária sobre a folha de salário supera países como Estados Unidos (6,2), Canadá (5,6) e Reino Unido (6,1).
A ascensão da carga tributária ao longo dos anos não é sinônimo de contrapartidas para a sociedade. Seria se o montante de receita arrecado fosse traduzido em gastos essenciais e, consequentemente, transformado em qualidade de vida para a população. Entretanto, o que visualizamos é exatamente o oposto. O sistema tributário brasileiro é essencialmente regressivo, com predomínio dos impostos indiretos, isso sem contar a Carga Tributária Líquida (carga tributária bruta (-) transferências de assistência, previdência e subsídios), que mensura exatamente o que entrou nos cofres públicos.
Assim, a lógica utilizada pelo governo ao cortar os gastos públicos aumentando a carga tributária e apropriando-se da desvinculação de receitas da União é uma medida recorrente adotada para gerar superávit primário e reduzir o montante da dívida pública. Porém, o efeito combinado entre 2014 e 2015 do superávit primário e os juros nominais resultaram no aumento da dívida nos respectivos anos (gráfico 3).
Já no acumulado parcial do ano de 2016 apresentado pelo Banco Central em novembro, os juros nominais totalizaram R$331,2 bilhões, comparativamente a R$426,2 bilhões no mesmo período do ano anterior. Em doze meses, os juros nominais atingiram R$406,8 bilhões (6,61% do PIB). A Dívida Bruta pública também alcançou a ordem de R$4.330,5 bilhões em outubro (70,3% do PIB), marcando um novo recorde ante 66,2% do acumulado do ano de 2015 (gráfico 4).
O orçamento geral da União do total de R$ 2,2 trilhões também enfatiza que há um dispêndio com pagamento de juros, em contrapartida aos gastos com políticas sociais como é o caso da previdência social.
Gráfico 5 – Crédito: Auditoria Cidadã da Dívida | Fonte: SIAFI
Esta hipertrofia por que passa o capital financeiro, segundo o autor F. Chesnais em “A Mundialização do Capital”, além de uma cultura enraizada de disputa de interesses em cargos de subserviência aos bancos privados nacionais e internacionais através da liberalização das finanças, resultou nos excessos da securitização da dívida pública e incentivo ao parcelamento de dívidas pelos contribuintes.
Da mesma forma, como cita Jordeana David no artigo ‘A Seguridade Social em tempos de crise do capital’, o preço dessa titularização é uma ‘supertributação’ à classe trabalhadora, assim como dito por Karl Marx: “os empréstimos capacitam o governo a enfrentar despesas extraordinárias, sem que o contribuinte sinta imediatamente, mas exigem ainda sim elevação de impostos”.
Histórico brasileiro
O conceito de Seguridade Social foi instituído pela Constituição Federal de 1988, associado a melhorias nos setores de saúde, previdência e assistência social. Segundo o artigo 195 da Carta Maior, o financiamento da seguridade provém do financiamento de toda sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e de determinadas contribuições sociais.
Em 1990, com a instauração da política neoliberal, é possível verificar uma saída gradual da classe trabalhadora rumo à aquisição de serviços como previdência privada e mercantilização da saúde, ou seja, uma maneira de solucionar por conta própria as problemáticas da crise econômica. É o que a autora Jorneana David, chama de ‘contrarreforma’ do Estado, que também inclui desapropriação de espaços organizados pelas políticas sociais, em prol da iniciativa privada. “Esse é um contexto de contrarreforma, através de novos processos políticos ao lado do agravamento da crise econômica, pelo movimento do grande capital e da burocracia estatal, que procura negar as conquistas obtidas, alegando a necessidade de adequar o modelo de seguridade social às atuais reformas econômicas do país”.
É neste contexto delicado que a previdência social sofre as consequências: de um lado a PEC dos gastos, que limita as despesas essenciais para manutenção da ordem estatal e extingue direitos e ações garantidos pela Carta Maior; do outro, a DRU, que, ao desvincular parte da receita previdenciária, propaga o discurso de déficit do modelo impulsivamente.
Fonte: Revista Classe