COMENTÁRIOS À NOTA EXPLICATIVA DA SEFAZ-CE Nº 04/2025
Por José Ribeiro Neto*
I – EXPLICITANDO A MATÉRIA
Foi publicada no Diário Oficial do Estado do Ceará (DOE/CE) de 30/10/2025 a Nota Explicativa SEFAZ/CE nº 04/2025, que busca interpretar o Decreto nº 33.746/2020, que dispõe sobre o regime de substituição tributária nas operações com trigo em grão, farinha de trigo e mistura de farinha a outros produtos, e dá outras providências.
O Decreto em questão regulamentou o Protocolo ICMS 46/2000, que dispõe sobre a harmonização da substituição tributária do ICMS, nas operações com trigo em grão e farinha de trigo realizadas pelos Estados signatários, integrantes das Regiões Norte e Nordeste.
Nos termos do Decreto em referência, o ICMS-ST é recolhido no momento da entrada do trigo ou grão ou da farinha de trigo no Estado, encerrando a tributação das operações subsequentes, o que significa dizer que as saídas posteriores de produtos derivados da farinha de trigo não sofrem nova incidência do imposto.
O objetivo da Nota Explicativa é delimitar o alcance do chamado “encerramento da tributação”, isto é, as situações em que o ICMS-ST pago anteriormente dispensa nova tributação nas etapas seguintes.
Para a SEFAZ/CE, a regra prevista no Decreto nº 33.746/2020 possui caráter restritivo, pois se limita a determinados produtos e a determinados estabelecimentos, quando houver a retenção do ICMS-ST com encerramento da tributação desse imposto até o consumidor final.
Isso significa, a teor da Nota Explicativa em questão, que a retenção do ICMS-ST sem encerramento da tributação do ICMS produz novas situações tributárias.
É o que veremos nos tópicos seguintes, bem como as suas repercussões decorrentes desse entendimento da SEFAZ/CE via Nota Explicativa.
II – DA RETENÇÃO DO ICMS-ST NAS OPERAÇÕES COM FARINHA DE TRIGO “COM” ENCERRAMENTO DA TRIBUTAÇÃO DO IMPOSTO
De conformidade com a Nota Explicativa, o encerramento da tributação do ICMS relativa às operações subsequentes abrange somente produtos tipicamente industriais derivados da farinha de trigo, produzidos por estabelecimentos industriais de panificação, massas, biscoitos e bolachas, enquadrados no Capítulo 19 da NCM, a exemplo de:
- massas alimentícias (exceto as do Capítulo 16 da NCM, como massas recheadas com carne ou peixe);
- pães, croissants;
- bolos, tortas, brownies;
- biscoitos e bolachas;
- waffles, wafers;
- torradas;
- casquinhas de sorvete;
- snacks sem recheio;
- panetones.
Nessas hipóteses, o ICMS já foi integralmente retido por substituição tributária na etapa anterior pelos estabelecimentos industriais, não havendo, por conseguinte, a tributação do ICMS em relação a esses produtos nas etapas seguintes.
Assim, quando esses estabelecimentos – restaurantes, lanchonetes, panificadoras, pizzarias, bares, confeitarias, hotéis, buffets, etc. – revendem produtos prontos classificados no Capítulo 19 da NCM, sem modificar a sua natureza, “aplica-se o encerramento da tributação do ICMS”. Vide os exemplos: determinada panificadora revende pães industrializados embalados e produzidos por estabelecimento industrial; determinada lanchonete revende bolachas prontas adquiridas de estabelecimento industrial.
De ressaltar que, ocorrendo a retenção do ICMS-ST “com encerramento da tributação do imposto”, não haverá mais a cobrança desse imposto até o consumidor final, ainda que os “contribuintes substituídos”:
- sejam inscritos no Regime Normal de Recolhimento, haja vista que, quando da apuração do ICMS-ST, os créditos da operação anterior foram aproveitados em seu cálculo;
- sejam optantes pelo Regime Especial de Tributação previsto nos arts. 763 a 766-A do Decreto nº 24.569/1997 (Regulamento do ICMS/CE – Livro Terceiro), caso em que as receitas decorrentes da retenção do ICMS-ST devem ser segregadas das receitas totais desses contribuintes, evitando-se a sua inclusão na base de cálculo para fins de apuração do ICMS com a alíquota reduzida de 4,15%;
- sejam optantes pelo Simples Nacional, caso em que as receitas decorrentes da retenção do ICMS-ST devem ser segregadas das receitas totais desses contribuintes, evitando-se a sua inclusão na base de cálculo para fins de apuração do ICMS apurado no DAS do Simples Nacional (1,95% a 3.95%).
Os exemplos a seguir esclarecem melhor a matéria: fábrica M. Dias Branco vende bolachas a determinadas panificadoras, que as revendem para o consumidor final; fábrica J. Macêdo vende biscoitos a determinados restaurantes, os revendem para consumidores finais.
Em tais situações, como o ICMS devido pelos “contribuintes substituídos”, isto é, as panificadoras e os restaurantes nos exemplos acima, relativo às suas operações subsequentes, já foi retido e recolhido pelos “contribuintes substitutos”, o imposto não mais será exigido pelo Fisco até o consumidor final.
III – DA RETENÇÃO DO ICMS-ST NAS OPERAÇÕES COM FARINHA DE TRIGO “SEM” ENCERRAMENTO DA TRIBUTAÇÃO DO IMPOSTO
Consoante assim dispõe a Nota Explicativa da SEFAZ/CE, “não será considerada encerrada a tributação do ICMS” quando os produtos derivados da farinha de trigo forem preparados ou vendidos por estabelecimentos que não sejam industriais de panificação ou massas, a exemplo de restaurantes, pizzarias, lanchonetes, bares, confeitarias, padarias, hotéis, buffets, etc.
No entendimento da SEFAZ/CE, esses estabelecimentos não são “beneficiados” pelo encerramento do ICMS-ST da farinha de trigo, mesmo que esse produto já tenha sido tributado pelo ICMS-ST na etapa de aquisição da farinha de trigo.
Nesse caso, os estabelecimentos acima mencionados devem recolher o ICMS normalmente sobre a venda de seus produtos derivados da farinha de trigo, conforme o regime a que estão sujeitos: Regime Normal, Regime Especial de Tributação ou Simples Nacional.
É assim tendo em vista que esses estabelecimentos usaram a farinha de trigo para produzir alimentos novos, como pizza, sanduíche, bolo recheado, refeição pronta, etc., caso em que o encerramento da tributação não se aplica, pois há transformação do insumo, isto é, a farinha de trigo, em novos produtos, os quais se sujeitam a uma nova tributação do ICMS.
De acordo com a Nota Explicativa da SEFAZ/CE, os procedimentos a serem adotados pelos contribuintes do ICMS serão os seguintes:
- quando inscritos no Regime Normal de Recolhimento, o imposto retido e pago pelo “substituto tributário” será apropriado como crédito em sua Conta Gráfica do ICMS (Escrituração Fiscal Digital – EFD);
- quando optantes pelo Regime Especial de Tributação previsto nos arts. 763 a 766-A do Decreto nº 24.569/1997 (Regulamento do ICMS/CE – Livro Terceiro), não haverá a segregação das receitas decorrentes da retenção do ICMS-ST e nem caberá o direito à apropriação, como crédito, do ICMS retido anteriormente;
- quando optantes pelo Simples Nacional, não haverá a segregação das receitas decorrentes da retenção do ICMS-ST e nem caberá o direito à apropriação, como crédito, do ICMS retido anteriormente.
Nos tópicos seguintes cuidaremos das consequências oriundas das operações sujeitas à retenção do ICMS-ST “sem” encerramento da tributação, e as “ilegalidades” da Nota Explicativa da SEFAZ/CE em relação a essas vedações, seja no tocante à segregação das receitas seja no tocante aos créditos do ICMS.
Por fim, demonstraremos, também, a “ilegalidade” da Nota Explicativa em relação à “retroatividade” das operações ocorridas anteriormente à sua vigência.
IV – DIREITO À APROPRIAÇÃO DOS CRÉDITOS DO ICMS NAS OPERAÇÕES SUJEITAS AO ICMS-ST “SEM” ENCERRAMENTO DA TRIBUTAÇÃO – REGIME NORMAL DE RECOLHIMENTO
Em consonância com o “princípio da não cumulatividade do ICMS”, a Nota Explicativa da SEFAZ/CE permite aos estabelecimentos inscritos no Regime Normal de Recolhimento o direito à apropriação do montante do imposto retido por substituição tributária na etapa anterior, quando “não houver o encerramento da tributação do imposto”, de sorte a evitar dupla tributação.
Por conseguinte, considerando que os contribuintes inscritos no Regime Normal de Recolhimento possuem “Conta Gráfica do ICMS”, na qual são apurados os créditos decorrentes das aquisições tributadas anteriormente, bem como os débitos decorrentes das saídas subsequentes também tributadas, a Nota Explicativa esclarece que o ICMS retido na etapa anterior possa ser apropriado como crédito pelo contribuinte inscrito nesse Regime de Recolhimento, o qual será compensado com os débitos decorrentes das saídas subsequentes.
Assim, no que concerne aos contribuintes do ICMS inscritos no Regime Normal de Recolhimento, não há maiores polêmicas, haja vista que o ICMS retido por substituição tributária pode ser apropriado como crédito em sua Escrituração Fiscal Digital (EFD).
V – VEDAÇÃO À SEGREGAÇÃO DAS RECEITAS OU APROPRIAÇÃO DOS CRÉDITOS DO ICMS NAS OPERAÇÕES SUJEITAS AO ICMS-ST “SEM” ENCERRAMENTO DA TRIBUTAÇÃO – SIMPLES NACIONAL E REGIME ESPECIAL DE TRIBUTAÇÃO
A Nota Explicativa determina que, nas operações de aquisição de farinha de trigo com ICMS-ST “sem” encerramento da tributação, fica vedada a segregação das receitas tributadas pelo regime de substituição tributária, bem como a apropriação dos créditos do ICMS, quando os “contribuintes substituídos” forem optantes pelo Simples Nacional (Lei Complementar nº 123/2006) ou pelo Regime Especial de Tributação de que tratam os arts. 763 a 766-A do Decreto nº 24.569/1997 (Regulamento do ICMS – Livro Terceiro).
Com relação à apropriação dos créditos do ICMS, nos termos do princípio da não cumulatividade, o art. 23 da LC nº 123/2006 veda expressamente o aproveitamento desses créditos pelas empresas optantes, haja vista que as operações praticadas por essas empresas possuem tratamento favorecido e beneficiado, recolhendo o ICMS, em conjunto com outros tributos definidos da referida LC 123/2006, com base em alíquotas reduzidas indicadas em seus anexos.
O mesmo ocorre em relação às optantes pelo Regime Especial de Tributação, cujo § 6.º do art. 763 do Decreto nº 24.569/1997 também veda o aproveitamento dos créditos do ICMS. Nesse Regime Especial, está prevista a aplicação do percentual de 4,15% (quatro vírgula quinze por cento) incidente sobre o total do faturamento bruto mensal relativo à saída de alimentação e outras mercadorias fornecidas individualmente ou em pacote contratado pelo adquirente.
Todavia, conforme se verá no tópico a seguir, o presente artigo não questiona essa vedação dos créditos do ICMS, pois não há que se aplicar, nesses casos, o princípio da não cumulatividade do ICMS, porém sim a vedação à segregação das receitas ou a possibilidade de ressarcimento ou restituição do valor do ICMS retido a maior, pois que ilegal e inconstitu
VI – O DIREITO À SEGREGAÇÃO DAS RECEITAS OU DO RESSARCIMENTO OU RESTITUIÇÃO DO VALOR DO ICMS RETIDO A MAIOR NO REGIME DE SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA – ILEGALIDADE FLAGRANTE
Como visto acima, a Nota Explicativa SEFAZ/CE 04/2025 esclarece que, sendo inaplicável o encerramento de tributação do ICMS e tratando-se de contribuinte optante pelo Simples Nacional ou pelo Regime Especial de Tributação, as receitas decorrentes das vendas relativas às operações envolvendo as mercadorias produzidas com a farinha de trigo, mesmo onerada anteriormente por substituição tributária (ICMS-ST), não serão objeto da segregação e nem cabe a esses contribuintes a apropriação dos créditos de ICMS-ST pago anteriormente.
Sintetizando a matéria:
- se há encerramento da tributação até o consumidor final (ICMS-ST definitivo), o optante do Simples Nacional ou do Regime Especial de Tributação não recolhe novamente o ICMS quando de suas operações subsequentes;
- porém, se não há encerramento da tributação (ICMS-ST não definitivo), a operação ainda está sujeita à tributação, restabelecendo-se a cadeia normal do imposto, caso em que esses contribuintes optantes não podem segregar as receitas, isto é, deve incluir as vendas totais no cálculo do ICMS devido nas operações subsequentes e não podem aproveitar os créditos do ICMS retido.
Esse entendimento da Nota Explicativa, por demais perverso, traz como consequências para esses contribuintes:
- o pagamento do ICMS retido (ICMS-ST) na etapa anterior;
- a impossibilidade de segregar essas receitas ou a apropriação desse montante pago como crédito do ICMS;
- e paga novamente o ICMS decorrente de suas operações subsequentes como optantes pelo Simples Nacional ou pelo Regime Especial de Tributação, caracterizando a cobrança em duplicidade do imposto em relação ao mesmo fato gerador.
Para se contrapor a esse entendimento da Nota Explicativa da SEFAZ/CE, vejamos o que dispõe a Cláusula Décima Quinta do Convênio ICMS 142/2018, que dispõe sobre os regimes de substituição tributária e de antecipação de recolhimento do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviço de Transporte Interestadual e de Comunicação (ICMS) com encerramento de tributação, relativos ao imposto devido pelas operações subsequentes:
Cláusula Décima Quinta. Nas operações interestaduais com bens e mercadorias já alcançados pelo regime de substituição tributária, o ressarcimento do imposto retido na operação anterior poderá, a critério da unidade federada de destino, ser efetuado pelo contribuinte mediante emissão de NF-e exclusiva para esse fim, em nome de qualquer estabelecimento fornecedor, inscrito como substituto tributário.
§ 1.º O ressarcimento de que trata esta cláusula deverá ser previamente autorizado pela administração tributária em cuja circunscrição se localizar o contribuinte, observado o prazo de 90 (noventa) dias, nos termos do § 1.º do art. 10 da Lei Complementar nº 87/1996.
§ 2.º O estabelecimento fornecedor, de posse da NF-e relativa ao ressarcimento de que trata o caput desta cláusula, poderá deduzir o valor a ser ressarcido do próximo recolhimento do imposto retido, a ser feito à unidade federada do contribuinte que tiver direito ao ressarcimento.
§ 3.º Quando for impossível determinar a correspondência do ICMS retido à aquisição do respectivo produto, tomar-se-á o valor do imposto retido quando das últimas aquisições dos bens e mercadorias pelo estabelecimento, proporcionalmente à quantidade saída.
§ 4.º O valor do ICMS retido por substituição tributária a ser ressarcido não poderá ser superior ao valor retido quando da aquisição dos respectivos bens e mercadorias pelo estabelecimento.
§ 5.º Em substituição à sistemática prevista nesta cláusula, ficam as unidades federadas autorizadas a estabelecer forma diversa de ressarcimento, ainda que sob outra denominação.
A Cláusula Décima Quinta supra, que regulamenta o art. 10 da Lei Complementar nº 87/1996, que dispõe sobre as regras gerais do ICMS, prevê o ressarcimento do ICMS-ST quando a operação subsequente não ocorre nos moldes presumidos na retenção do imposto pelo substituto tributário.
Ora, se o “substituto tributário” reteve o ICMS até o consumidor final em operações internas, com a aplicação da alíquota prevista na respectiva Lei do ICMS, em geral 20% (vinte por cento), mas o substituído tributário, isto é, o varejista, revende a mesma mercadoria para outro Estado, a operação efetiva passa a ser de natureza interestadual, caso em que se aplica a alíquota interestadual (4%, 7% ou 12%, conforme o caso).
Denota-se, de pronto, que o ICMS presumido foi cobrado a maior e surge o direito ao ressarcimento da diferença, conforme previsão do art. 10 da Lei Complementar 87/1996 (Lei Kandir).
Portanto, o Convênio ICMS 142/2018 apenas operacionaliza o princípio da restituição do ICMS-ST pago a maior.
Quando o regime de substituição tributária não encerra a fase de tributação, o ICMS retido é apenas um adiantamento, e não uma tributação definitiva, fato este, aliás, reconhecido pela própria Nota Explicativa da SEFAZ/CE.
Nessa linha de raciocínio, se posteriormente a operação gera débito de ICMS próprio (como ocorre no caso das empresas do Simples Nacional ou do Regime Especial de Tributação previsto nos arts. 763 a 766-A do Regulamento do ICMS/CE), deve-se segregar e deduzir o valor do ICMS-ST anteriormente retido, justamente para evitar bitributação.
Em outras palavras:
- o ICMS-ST funciona como antecipação de uma operação subsequente, a ser realizada pelo contribuinte substituído;
- o ICMS apurado na venda final sem encerramento da tributação é débito próprio do contribuinte substituído;
- e deve haver, por conseguinte, compensação ou restituição do valor já antecipado e cobrado a maior.
O princípio é o mesmo daquele que fundamenta o ressarcimento no Convênio ICMS 142/2018, pois não cabe ao Fisco ficar com imposto pago a maior em relação ao fato gerador efetivamente praticado pelo contribuinte substituído.
Assim, tanto o ressarcimento previsto no Convênio ICMS 142/2018 quanto o direito à compensação ou restituição nas operações sem encerramento da tributação repousam nos mesmos princípios constitucionais e legais:
1. princípio da legalidade tributária (art. 150, inciso I, da CF/1988), que determina que o Fisco não pode exigir tributo sem previsão legal, como ocorre em relação à cobrança a maior do ICMS pelo regime de substituição tributária “sem encerramento da tributação” nas operações subsequentes realizadas pelos contribuintes optantes pelo Simples Nacional e pelo Regime Especial de Tributação;
2. princípio da isonomia tributária (art. 150, inciso II, da CF/1988), que determina que o Fisco não pode instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, como ocorre em relação à cobrança a maior do ICMS pelo regime de substituição tributária “sem encerramento da tributação” nas operações subsequentes realizadas pelos contribuintes optantes pelo Simples Nacional e pelo Regime Especial de Tributação, diferentemente do que ocorre com os contribuintes do Regime Normal de Recolhimento;
3. princípio do não confisco (art. 150, inciso IV, da CF/1988), que determina que o Fisco não pode exigir tributo maior do que o efetivamente devido, como ocorre em relação à cobrança a maior do ICMS pelo regime de substituição tributária “sem encerramento da tributação” nas operações subsequentes realizadas pelos contribuintes optantes pelo Simples Nacional e pelo Regime Especial de Tributação;
4. princípio da vedação ao enriquecimento sem causa do Fisco (arts. 884 a 886 do Código Civil), que proíbe a Administração Fazendária de obter patrimônio de forma ilícita ou indevida em detrimento do contribuinte, pois que não prevista em lei, caso em que o Fisco fica obrigado a restituir o que foi exigido e pago de forma ilícita ou indevida. É justamente o que ocorre em relação à cobrança a maior do ICMS pelo regime de substituição tributária “sem encerramento da tributação” nas operações subsequentes realizadas pelos contribuintes optantes pelo Simples Nacional e pelo Regime Especial de Tributação.
É evidente que estamos diante de uma “dupla tributação do ICMS” sobre o mesmo fato gerador, violando os princípios constitucionais e legal acima referenciados.
Ora, esse entendimento expedido pela Nota Explicativa da SEFAZ/CE contraria a própria lógica jurídico-tributária.
A uma, porque a LC do Simples Nacional é um regime de tributação unificada e favorecida, mas não permite a possibilidade de bitributação, ou cobrança em duplicidade. Além disso, o art. 13, § 1º, inciso XIII, alínea “a”, da LC nº 123/2006 (Lei do Simples Nacional), exclui do DAS o ICMS devido por substituição tributária.
E a duas, porque o Regime Especial de Tributação previsto nos arts. 763 a 766-A do Regulamento do ICMS/CE também concede um tratamento diferenciado e favorecido aos contribuintes optantes por esse regime, ao exigir a alíquota de apenas 4,15% (quatro vírgula quinze por cento) sobre o faturamento bruto mensal de seus estabelecimentos. Todavia, esse tratamento não tem o condão de permitir a cobrança em duplicidade por parte da SEFAZ/CE.
Se a mercadoria já foi onerada por ICMS-ST, sem encerramento da tributação, o valor da ST compõe o custo da mercadoria, e não deveria gerar nova tributação integral no DAS do Simples Nacional ou no Regime Especial de Tributação, sob pena de o ICMS-ST funcionar como tributo sem compensação ou sem ressarcimento, o que contraria o § 7.º do art. 150 da Constituição Federal:
Art. 150. (...)
(...)
§ 7.º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.
Com efeito, se o fato gerador presumido não se realiza ou se realiza com base inferior à presumida, deve haver restituição ou abatimento do imposto pago antecipadamente de forma imediata e preferencial.
No caso em tela, tanto o optante do Simples Nacional como do regime Especial de Tributação efetua o pagamento do ICMS-ST de forma antecipada, mas volta a recolher o mesmo tributo dentro do DAS do Simples Nacional ou do Regime Especial de Tributação sem qualquer abatimento.
Trata-se de cobrança em duplicidade e de violação do princípio da legalidade, pois não há previsão legal na LC nº 123/2006 ou em convênio CONFAZ que vede a compensação do ICMS-ST pago quando não houver encerramento da tributação.
De ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou, em definitivo, sobre a regra do § 7.º do art. 150 acima transcrito, ao decidir, no julgamento do RE 593.849/SP, à luz do § 7.º do art. 150 da CF/1988, acerca da constitucionalidade ou não da restituição da diferença do ICMS pago a mais no regime de substituição tributária, quando a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida, fixando a seguinte tese de Repercussão Geral (Tema 201):
Tema 201 de Repercussão Geral (STF): É devida a restituição da diferença do ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida.
No caso específico da Nota Fiscal SEFAZ/CE nº 04/2025, é indiscutível que a base de cálculo das operações subsequentes praticadas pelos contribuintes optantes pelo Simples Nacional e pelo Regime Especial de Tributação, “com ou sem” encerramento da tributação, é “bem inferior àquela presumida” no cálculo da substituição tributária realizado pelo contribuinte substituto.
Com efeito, de lembrar que, quando da apuração do valor do ICMS a ser retido, o contribuinte substituto considerou no cálculo da substituição tributária a “alíquota interna” devida pelo contribuinte substituído, em geral 20% (vinte por cento).
Entretanto, por ocasião da “efetiva operação subsequente”, decorrente da aplicação do regime do ICMS-ST “sem” encerramento da tributação, tanto os optantes pelo Simples Nacional quanto os optantes pelo Regime Especial de Tributação se debitaram do ICMS em valor bem inferior ao retido na substituição tributária, o que enseja a imediata e preferencial restituição do imposto anteriormente pago a maior. Nesse contexto, a interpretação mais correta seria:
· permitir que o ICMS-ST pago (sem encerramento de tributação) possa ser abatido do valor correspondente à parcela de ICMS embutida no DAS do Simples Nacional ou na apuração do ICMS devido pelos optantes do Regime Especial de Tributação; ou
· permitir a restituição ou ressarcimento do ICMS-ST retido a maior, com base no art. 150, § 7º, da CF e no art. 10 da LC nº 87/1996.
Quando o optante do Simples Nacional ou do regime Especial de Tributação adquire farinha de trigo com ICMS-ST pago na origem e não ocorre o encerramento da cadeia do ICMS, surge uma anomalia gritante:
1. o ICMS-ST é antecipado pelo substituto tributário, embutindo custo no preço da mercadoria;
2. o contribuinte do Simples Nacional ou do Regime Especial de Tributação vende o seu produto, no qual a farinha de trigo foi usada com insumo, e recolhe novamente o ICMS dentro do DAS do Simples Nacional ou na apuração do ICMS devido nos termos do Regime Especial de Tributação, porque não pode segregar nem se ressarcir do ICMS pago a maior anteriormente às suas efetivas operações subsequentes;
3. o Estado do Ceará, então, recebe o mesmo imposto duas vezes, uma na retenção do ICMS-ST e outra na apuração do DAS do Simples Nacional ou no Regime Especial de Tributação, caracterizando indubitável cobrança em duplicidade.
Assim, chegamos à conclusão de que a Nota Explicativa da SEFAZ/CE padece de vícios materiais e formais, pois estabelece restrição não prevista na LC nº 123/2006 e nem na Lei do ICMS/CE (Lei nº 18.665/2023), violando os princípios da legalidade e isonomia tributárias (art. 150, incisos I e II, da CF/1988), além dos princípios da vedação ao confisco (art. 150, inciso IV, da CF/1988) e do enriquecimento sem causa (arts. 884 a 886 da Código Civil).
Por fim, a Nota Explicativa afronta diretamente a tese do STF no Tema 201 de Repercussão Geral, que determina a restituição, peremptória e imediata, da diferença do ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente, quando a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida, como no caso concreto.
VII – IMPOSSIBILIDADE DA RETROATIVIDADE DETERMINADA PELA NOTA EXPLICATIVA SEFAZ/CE Nº 04/2025
Em sua parte final, a Nota Explicativa da SEFAZ/CE esclarece que suas disposições são meramente interpretativas, e que seus preceitos foram elaborados com base na legislação vigente à data de sua publicação, razão pela qual produz efeitos retroativos, alcançando situações anteriores à sua edição, nos termos do art. 106, inciso I, do Código Tributário Nacional (CTN).
Em linhas gerais, para a SEFAZ/CE, os procedimentos determinados na Nota Explicativa devem ser observados desde a ocorrência dos fatos geradores relativos às operações subsequentes realizadas pelos contribuintes optantes pelo Simples Nacional (LC 123/2006) e pelo Regime Especial de Tributação (arts. 763 a 766-A do Regulamento do ICMS/CE), não cabendo a esses contribuintes alegarem boa-fé em relação às interpretações divergentes.
Contudo, como os preceitos determinados na Nota Explicativa implicam em majoração do ICMS, além da consequente supressão do direito ao ressarcimento do valor do ICMS pago a maior no regime de substituição tributária, o art. 106, inciso I, do CTN só admite retroatividade de atos que não resultem em agravamento da situação do contribuinte.
A interpretação central da Nota Explicativa SEFAZ/CE nº 04/2025 decorre do fato de que o encerramento da tributação do ICMS-ST da farinha de trigo não é amplo e irrestrito, pois somente se aplica às indústrias de produtos típicos derivados da farinha enquadrados no Capítulo 19 da NCM, não aos estabelecimentos de alimentação que apenas utilizam a farinha como insumo em preparações culinárias.
Na realidade, a Nota Explicativa não apenas “interpreta”, mas restringe direitos anteriormente reconhecidos, especialmente quanto ao encerramento da tributação do ICMS e o direito ao ressarcimento desse imposto pago a maior, o que destoa da regra prevista no inciso I do art. 106 do CTN.
Ademais, uma Nota Explicativa editada pelo Secretário da Fazenda do Estado do Ceará (SEFAZ/CE) não pode interpretar, restringir, ampliar ou modificar o alcance de dispositivo da Lei Complementar nº 123/2006 (Lei do Simples Nacional), por razões constitucionais e legais muito claras.
Com efeito, o art. 146, inciso III, alínea “d”, da Constituição Federal é categórico ao determinar que cabe à lei complementar: definir o regime jurídico do Simples Nacional; fixar obrigações, restrições, benefícios e limitações aplicáveis; estabelecer critérios de recolhimento unificado e regras de segregação de receitas.
Portanto, a LC do Simples Nacional é norma de competência nacional e hierarquicamente superior às leis estaduais, decretos e atos normativos da administração tributária, como é o caso da Nota explicativa sob nossa análise.
Em verdade, o Secretário da Fazenda do Estado do Ceará, como os titulares da Pasta da Fazenda dos demais entes tributantes, têm competência meramente operacional e executiva, nos limites da lei estadual e da lei complementar federal.
Assim, a Nota Explicativa, como ato infralegal e administrativo, pode:
Ø esclarecer a aplicação de normas já existentes;
Ø orientar a fiscalização e os contribuintes;
Ø mas não pode inovar nem reinterpretar lei complementar federal, muito menos modificar seu alcance.
O titular da Pasta Fazendária pode explicar “como aplicar” a LC 123/2006 no que couber ao ICMS, mas jamais reinterpretar seu conteúdo, criar restrições, vedações ou obrigações não previstas na lei complementar.
Ora, foi precisamente o que fez a Nota Explicativa SEFAZ/CE ao reinterpretar e inovar o alcance da regra estabelecida no § 4.º-A do art. 18 da LC nº 123/2006, ao determinar a vedação à segregação das receitas oriundas do regime de substituição tributária “sem” encerramento da tributação do ICMS, majorando o valor do imposto a ser pago pelos contribuintes optantes pelo Simples Nacional, ampliando indevidamente o alcance do inciso I do art. 106 do CTN.
O mesmo princípio se aplica em relação aos arts. 763 a 766-A do Regulamento do ICMS/CE, que trata do Regime Especial de Tributação nas operações realizadas por restaurantes, bares, lanchonetes e assemelhados, pois também “majora” indevidamente o valor do ICMS efetivamente devido pelos contribuintes, quando de suas operações subsequentes com os produtos derivados da farinha de trigo.
A Nota Explicativa SEFAZ/CE nº 04/2025, ao pretender “explicitar” o alcance do encerramento da tributação do ICMS-ST sobre a farinha de trigo, extrapolou os limites da interpretação administrativa, criando novas obrigações e restrições incompatíveis com a legislação estadual (Decreto nº 24.569/1997), com a Lei Complementar nº 123/2006 (Lei do Simples nacional) e com a própria Constituição Federal (art. 150, § 7.º).
Trata-se de ato materialmente normativo e inovador, porém não interpretativo, razão pela qual não pode retroagir, pois não atende o disposto no art. 106, I, do CTN.
Como se não bastasse, a Nota Explicativa da SEFAZ/CE:
· restringe indevidamente o encerramento da tributação do ICMS, criando “novas hipóteses de incidência” relativas ao imposto;
· viola a regra prevista no § 7.º do art. 150 da Constituição Federal, ao impedir a restituição do ICMS-ST em razão da não ocorrência do fato gerador presumido;
· usurpa competência do legislador do Congresso Nacional e do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN), violando a hierarquia normativa prevista no art. 59 da Constituição Federal;
· institui a cobrança em duplicidade, pois determina que os optantes pelo Simples Nacional e pelo Regime Especial de Tributação recolham o ICMS retido por substituição tributária em conjunto com o DAS do Simples Nacional ou em conjunto com o Regime Especial de Tributação.
Diante disso, a Nota Explicativa SEFAZ/CE nº 04/2025 é juridicamente inválida, devendo ser desconsiderada em sua aplicação retroativa e afastada judicialmente nos pontos em que cria ônus tributário não previsto em lei em sentido estrito, aprovada pelo Poder Legislativo.
O Secretário da Fazenda do Estado do Ceará não pode, por meio de nota explicativa, que se diz interpretativa, transformar um regime simplificado e favorecido, que cobra o ICMS com alíquotas reduzidas – 4,15% para os optantes do Regime Especial de Tributação ou 1,95% a 3.95% para os optantes do Simples nacional – em regime confiscatório, nem instituir nova tributação sob o disfarce de “interpretação da norma”, sob pena de eventuais ações judiciais que possam ser interpostas pelos contribuintes lesados em seu direito ao “não recolhimento do ICMS em duplicidade”.
A Constituição Federal, o CTN, a Lei Complementar 123/2006 e a própria Lei do ICMS/CE não permitem que a segurança jurídica e a legalidade tributária sejam substituídas pela conveniência meramente arrecadatória.
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*JOSÉ RIBEIRO NETO é Advogado Tributarista e Penal-Tributarista, Auditor Fiscal da SEFAZ/CE aposentado, Mestre em Direito Constitucional e Especialista em Direito Público, Constitucional e Tributário. Foi Vice-Presidente do CONAT/CE e Presidente da 2ª Câmara de Julgamento do CONAT/CE, além de Julgador de Primeira e Segunda Instância. É autor dentre outros, dos seguintes livros: “Regulamento do ICMS/CE Integralmente Comentado”, “Direito Tributário & Legislação Tributária do Estado do Ceará – Comentários, Doutrina e Jurisprudência” e “Comentários è Legislação Tributária e Processual-Tributária do Estado do Ceará”, além de inúmeros artigos sobre matéria tributária. No prelo: “Lei Complementar nº 214/2024 Integralmente Comentada”.