ESTADO DA ECONOMIA - A política econômica e a governança dos gastos tributários indiretos
Gostaria de iniciar a minha participação nesta coluna, que trata da análise jurídica da atuação do Estado na economia, abordando alguns aspectos gerais do uso dos gastos tributários indiretos para a consecução de políticas econômicas dos governos
O Estado pode atuar (alguns preferem a expressão intervir) no domínio econômico como agente no mercado ou como regulador da própria economia[1]. Como agente normativo e regulador, o Estado pode dirigir ou induzir comportamentos dos agentes econômicos, nos termos do artigo 174 da Constituição Federal de 1988.
Uma das formas dessa atuação por meio de normas jurídicas é a do manejo de gastos tributários (indiretos) como instrumento de influência sobre setores da economia e até mesmo para o atingimento de finalidades típicas das políticas sociais e econômicas.
O debate sobre a delimitação do que seria gasto tributário é complexo e se faz presente em vários países[2]. Inicialmente, podemos defini-lo como gastos indiretos do governo que configuram renúncia de receita e que se valem da legislação tributária para atender a objetivos econômicos e sociais. Para que se os identifique corretamente, e aqui começam as dificuldades, há a necessidade da conjugação de dois elementos: (i) uma norma jurídica que represente um desvio ao sistema tributário de referência e que possua (ii) um caráter semelhante ao do gasto público direto, mas que se vale da forma indireta, representativa da perda de arrecadação tributária potencial em favor de uma disponibilidade econômica dos contribuintes, que não foram obrigados a recolher o tributo alvo da medida[3]
Quando os governos, nos limites de suas competências e autorizações legais, valem-se dessas renúncias de arrecadação, o fazem para atingir objetivos compensatórios (em virtude de dificuldades de prestar serviços à sociedade de maneira plenamente satisfatória) ou para desenvolver setores econômicos ou regiões.
Dito mais claramente, o gasto tributário é uma forma indireta de os governos atuarem na economia, renunciando à parcela da arrecadação de tributos a partir de normas tributárias que criam desvios sobre a tributação padrão (isenções tributárias, regimes específicos etc), permitindo que o valor poupado dos contribuintes possa induzir comportamentos ou atender às suas necessidades.
Múltiplos são os questionamentos sobre a conveniência desta intervenção estatal no processo econômico: se a forma indireta é a melhor maneira de atuar (e não por meio de gastos diretos); se a forma como as isenções são planejadas é a preferível e se há eficiência e efetividade dos programas[4].
Para devida quantificação do tema e de sua importância, basta mencionar que o total projetado dos gastos tributários federais para 2015 (Projeto de Lei Orçamentária de 2015) foi de R$ 282,4 bilhões, o que representa 4,92% do PIB e 21,10% das receitas administradas pela Receita Federal do Brasil[5].
Sobre o exercício de 2014, atualmente sob análise do Tribunal de Contas da União (TCU), as renúncias de receitas federais alcançaram o montante projetado de R$ 302,3 bilhões em 2014, assim classificados: R$ 195,3 bilhões de benefícios tributários, R$ 58,6 bilhões de benefícios tributários-previdenciários e R$ 48,4 bilhões de benefícios financeiros e creditícios. Ou seja, o gasto tributário total foi de R$ 254 bilhões (descontando-se os benefícios creditícios e financeiros) [6].
O próprio TCU chama a atenção para o montante das renúncias, ao assinalar que elas praticamente se equiparam (base 2014) com os gastos diretos realizados com saúde, educação e assistência social (esses, na ordem de R$ 256 bilhões frente aos R$ 254 bilhões dos gastos tributários)[7].
Como forma de garantir a transparência fiscal dos dados da renúncia estabelecida por meio de gastos tributários, a Constituição Federal de 1988 (artigo 165, §6º) determina que o projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente das renúncias de natureza tributária[8]. No âmbito federal, compete à Receita Federal do Brasil a apuração dos gastos tributários. O Demonstrativo de Gastos Tributários (DGT) apresenta diversos quadros demonstrativos dos benefícios tributários por região do país, por função orçamentária e por tributo.
A análise de direito econômico que julgamos necessária é a da compreensão das políticas econômicas adotadas pelo governo (por delimitação, aqui, do federal) que se valeram de benefícios tributários (gastos tributários na ponta da renúncia), a partir da identificação: (i) dos estudos que precederam a sua elaboração; (ii) da forma como foram implementados; (iii) da governança de cada um destes gastos tributários e (iv) da análise de eficiência e efetividade das respectivas políticas.
O direito econômico ocupa-se justamente da pesquisa jurídica das políticas econômicas[9]. Assim, pretendemos, no decorrer de alguns de nossos textos nesta coluna, abordar aspectos específicos dos gastos tributários, incluindo toda a dificuldade em avaliar as políticas econômicas e seus efeitos sobre o mercado.
Já neste ensaio, convém registrar que os principais gastos tributários do governo federal (aproximadamente 80,8%), por tributo, são os que envolvem o Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF – 13,37%) e da Jurídica (IRPJ – 15,33%), a Contribuição sobre o Faturamento (COFINS – 24,97%, adicionados a 4,99% de PIS) e a Contribuição para a Previdência Social (22,14%)[10]. No acompanhamento pelo TCU das contas de 2014, os tributos que apresentaram as maiores variações de renúncia entre 2010 e 2014 foram a contribuição previdenciária (227%), a do Pis/Pasep (99%), a Cofins (95%) e o IR Fonte (93%)[11].
Os principais gastos tributários são: Simples Nacional (25,65%); Zona Franca de Manaus (9,85%), Agricultura e Agroindústria – Desoneração da Cesta Básica (8,91%) e Desoneração da Folha de Pagamento (7,93%)[12].
Muitos questionamentos podem ser feitos, incluindo se todos os gastos tributários, assim considerados pela Receita Federal do Brasil, de fato o são (se não seriam meros regimes alternativos, mas não desvios específicos, se não representariam ausência de competência para tributar), além de críticas como as do TCU, que sempre ressaltam que os benefícios tributários do governo federal acabam sendo concentrados nas regiões mais desenvolvidas[13].
Por ora, em nosso texto, gostaríamos de chamar a atenção para as possibilidades e dificuldades no manejo de renúncias tributárias para a implementação de políticas econômicas e as diversas características que elas podem assumir, como a de serem anticíclicas, de longo prazo e estruturantes; das diversas finalidades que podem visar, como o adensamento de cadeias produtivas, proteção ou formalização do emprego, produtividade, redução de desigualdades regionais e sociais.
Vários pontos poderão ser objeto de análise crítica, tais como: as contribuições destinadas à seguridade social, cuja razão de apuração deveria ser o seu proporcional custeio, prestar-se-iam a exercícios de política industrial? Estas contribuições deveriam ser tratadas como se fossem verdadeiros impostos sobre o valor adicionado (ainda que submetidas a um dos regimes pontuais mais sui generis que se poderia imaginar), em que a alíquota efetiva pode variar de um valor próximo a 9,25% sobre a receita bruta (para aquela sujeitos ao regime não-cumulativo e que não possuem direito a muitos créditos) até o acúmulo de valor a receber da União? A substituição da base tributável sobre a folha de pagamento pela receita bruta de forma eclética, pontual, imprecisa e ciclotímica (ora adaptada a um ciclo econômico, ora permanente, ora alvo de revogação parcial) seria a melhor forma de se perseguir a proteção ao trabalho e a produtividade de setores econômicos?
Apesar de todas as críticas que podem ser endereçadas aos gastos tributários, eles, ao lado de gastos diretos e dos benefícios creditícios e financeiros, podem e devem concorrer para o atingimento dos objetivos da ordem econômica da República Federativa do Brasil, mas devem passar por um longo e crescente debate, sobretudo em torno de sua governança e análise de resultados, sem desmerecer as dificuldades na busca de dados e metodologias aptas a tal desiderato. O direito econômico, desta forma, deve ser mais uma das possíveis formas de analisar este complexo fenômeno.
[1] Sobre as distintas formas de atuação do Estado no e sobre o domínio econômico, ver Eros Roberto GRAU, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica), 7ª ed, São Paulo, Malheiros, 2002, p. 129 e ss.
[2] Por todos, ver OECD. Tax Expenditures in OECD Countries, Paris: OECD. 2010.
[3] A definição da Receita Federal do Brasil é: “Gastos tributários são gastos indiretos do governo realizados por intermédio do sistema tributário, visando atender objetivos econômicos e sociais.
São explicitados na norma que referencia o tributo, constituindo-se uma exceção ao sistema tributário de referência, reduzindo a arrecadação potencial e, consequentemente, aumentando a disponibilidade econômica do contribuinte.
Têm caráter compensatório, quando o governo não atende adequadamente a população dos serviços de sua responsabilidade, ou têm caráter incentivador, quando o governo tem a intenção de desenvolver determinado setor ou região”. Ver Demonstrativo dos Gastos Governamentais Indiretos de Natureza Tributária - (Gastos Tributários) – PLOA. 2015, p. 10: http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/gastos-tributarios/previsoes-ploa/arquivos-e-imagens/dgt-2015.
[4] Questionamentos e aspectos problemáticos do tema já aparecem na obra precursora de Stanley SURREY: Pathways to tax reform: the concept of tax expenditures. Cambridge: Harvard University Press, 1974 e Stanley SURREY & Paul R. MCDANIEL. “The Tax Expenditure Concept and the Budget Reform Act of 1974”, In: Boston College Industrial and Commercial Law Review, 17, Number 5, 1976, pp. 679-737.
[5] Ver DGT 2015, p. 86: http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/gastos-tributarios/previsoes-ploa/arquivos-e-imagens/dgt-2015. Esses números certamente sofrerão alterações no decorrer da apuração efetiva, sobretudo em virtude do atual cenário macroeconômico.
[6] Ver Ministro Augusto NARDES (relator). Relatório e Parecer Prévio Sobre as Contas do Governo da República. Exercício 2014. Tribunal de Contas da União, Brasília: TCU, 2015.
http://portal3.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/comunidades/contas/contas_governo/Contas2014/index.html. Convém assinalar que os valores de 2014 são projetados (em razão do prazo para processamento completo das declarações de ajustes das pessoas físicas e jurídicas).
[7] Idem, Ibidem, p. 131.
[8] No mesmo sentido, o artigo 5º da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que adiciona em seu inciso II: “será acompanhado do documento a que se refere o § 6o do artigo 165 da Constituição, bem como das medidas de compensação a renúncias de receita e ao aumento de despesas obrigatórias de caráter continuado”. O artigo 14 trata das regras de instituição das renúncias e tem sido alvo de sérias e importantes discussões, inclusive em acórdãos do TCU.
[9] Como assinalado há muito por Fábio Konder COMPARATO, o direito econômico representa “o conjunto das técnicas jurídicas de que lança mão o estado contemporâneo na realização de sua política econômica". Ver: "O Indispensável Direito Econômico", Revista dos Tribunais nº 353, São Paulo, RT, março de 1965, pp. 22.
[10] Quadro VI do DGT da PLOA 2015, p. 24.
[11] Relatório e Parecer Prévio Sobre as Contas do Governo da República. Exercício 2014, p. 132.
[12] DGT da PLOA 2015, quadro X, p. 36.
[13] Relatório e Parecer Prévio Sobre as Contas do Governo da República. Exercício 2014, p. 132.
José Maria Arruda de Andrade é Professor Associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente em Direito Econômico e doutor em Direito Econômico e Tributário pela USP. Foi pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique, Alemanha.
Fonte: Revista Consultor Jurídico