CONSULTOR TRIBUTÁRIO - Diferencial de alíquota de ICMS traz novas controvérsias
Por Gustavo Brigagão
Daqui a alguns poucos dias, mais precisamente a partir de 1º de janeiro de 2016, passarão a produzir efeitos as novas regras relativas à incidência do ICMS nas operações e prestações interestaduais que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, previstas na Emenda Constitucional 87, de 16 de abril de 2015, e no Convênio 93, de 17 de setembro de 2015.
A edição dessas normas teve origem na discussão da validade do Protocolo ICMS 21, celebrado no âmbito do Confaz, em 7 de abril de 2011, que contava com a assinatura de 18 unidades federadas (todas localizadas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste) e regulava a incidência do ICMS nas vendas interestaduais a consumidores finais efetuadas por meio de internet (e, também, de telemarketing ou showroom), de forma diversa do que determinava a própria Constituição Federal.
De fato, como tive oportunidade de demonstrar nesta coluna, à época em que editado esse protocolo, a CF dispunha de regras claras relativas à repartição do ICMS incidente nas operações e prestações interestaduais que destinavam mercadorias e serviços a consumidor final, regras essas que variavam conforme o consumidor fosse contribuinte, ou não, do imposto:
a) nas vendas a consumidor final contribuinte do imposto (e somente nesse caso), o ICMS incidia na origem e no destino, cabendo ao estado de origem montante correspondente a 7% ou 12% sobre o valor da operação; e, ao de destino, cabia montante calculado com base na diferença entre a alíquota interna e a interestadual (diferencial de alíquotas);
b) nas vendas a consumidor final não contribuinte, o imposto incidia exclusiva e integralmente na origem, sendo ele calculado com base na alíquota interna daquele ente federativo.
As regras do Protocolo ICMS 21/2011 eram inconstitucionais e foram assim declaradas pelo STF nas adins 4.628 e 4.713 e no RE 680.089 (RG), porque contrariavam a Lei Maior quando determinavam que operações interestaduais não presenciais seriam invariavelmente tributadas por ambos os estados (de origem e destino), independentemente de os consumidores finais adquirentes serem contribuintes ou não do imposto.
A EC 87/2015 serviu justamente para constitucionalizar essas normas, por meio da determinação de que, em qualquer operação interestadual realizada com consumidor final, contribuinte ou não do imposto, caberia ao estado de origem o imposto correspondente à alíquota interestadual e, ao de destino, o recolhimento do diferencial de alíquota. A responsabilidade pelo recolhimento desse diferencial foi atribuída ao destinatário, quando contribuinte do imposto. Não sendo esse o caso, ou seja, quando o destinatário não se revestir da qualidade de contribuinte, aquela responsabilidade é atribuída ao remetente.
Determinou-se, ainda, uma partilha gradual do valor do imposto correspondente ao diferencial de alíquotas interna e interestadual, que segue uma tabela que se inicia, no ano de 2015, com 20% sendo destinados ao estado de destino e 80% ao estado de origem, culminando, em 2019, com 100% destinados àquele primeiro estado. Como as regras da EC 87/2015 só produzirão efeitos a partir de 2016, a referida repartição será implementada com observância inicial do segundo estágio dessa tabela, que atribui 40% ao estado de destino e 60% ao estado de origem. Assim determinou o Convênio 93/2015, cláusula 10ª.
Não tenho dúvidas de que, em face das desigualdades regionais do país, essas novas normas constitucionais acabaram por melhor se adequar à necessidade de aprimoramento da repartição de receitas entre os estados produtores e os consumidores. Mas também estou certo de que, na forma em que implementadas, elas trarão aos contribuintes indesejada oneração no que diz respeito ao cumprimento de obrigações acessórias, potencial violação ao princípio constitucional da não cumulatividade em determinadas circunstâncias e, ainda, perplexidade diante da indefinição de determinados conceitos vitais para a sua compreensão e consequente aplicação.
Esses problemas foram muito bem endereçados pelo meu sócio Bruno Lyra e por Daniel Dix, em excelente palestra que ambos recentemente proferiram sobre o tema, na Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF).
Demonstrou-se, nessa ocasião, que há relevante incremento de oneração relativa ao cumprimento de obrigações acessórias (compliance costs) que deverão ser observadas por contribuintes que realizem vendas interestaduais a consumidores finais não contribuintes do imposto.
De fato, tais contribuintes passarão a ter que conhecer a legislação interna de todos os estados onde localizados os seus compradores consumidores finais, na medida em que terão que calcular e recolher aos cofres públicos desses estados o diferencial de alíquota que for devido nas vendas que realizarem. Em outras palavras, isso significa dizer que tais contribuintes terão que se manter atualizados sobre a complexa legislação interna de cada um dos estados para os quais venderem. E quanto maior for o número desses estados, maior será essa complexidade. Os contribuintes que não estiverem preparados para esse incremento de burocracia terão que empregar esforços nesse infrutífero investimento.
Isso para não falar no fato de que essa diversidade de legislações aplicáveis às possíveis vendas de uma mesma mercadoria no território nacional trará ao contribuinte não só o extremo ônus acima referido, mas a necessidade de aplicar preços diferenciados, conforme variem as alíquotas internas dos estados para os quais sejam as vendas realizadas. Quanto maiores ou menores sejam essas alíquotas, maiores ou menores serão os preços que terão que ser cobrados e, sempre maior, o ônus do contribuinte em fazer esse controle e respectivo recolhimento.
Essa não será uma tarefa fácil, mesmo para as grandes empresas, tendo em vista que, em cada estado para o qual vendas sejam realizadas, será necessária uma inscrição estadual local, o preenchimento de guias de recolhimento com as características determinadas pela legislação respectiva (pois, o Convênio 93/2015 permite que cada estado defina um documento de arrecadação distinto para os recolhimentos que sejam feitos nessas circunstâncias), bem como o atendimento das demais obrigações acessórias aplicáveis. Isso para não falar no fato de que esse mesmo contribuinte terá que estar disponível para atender quantas fiscalizações forem iniciadas em cada um desses mesmos estados, com todo o ônus daí decorrente.
Se, para as grandes empresas, todas essas obrigações já representam um ônus inconcebível, imagine o leitor como serão afetadas as empresas submetidas ao Regime Especial Unificado de Tributação das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte — Simples Nacional, para o qual a aplicação dessas novas regras de recolhimento do diferencial de alíquota em outros estados é de constitucionalidade extremamente duvidosa, tendo em vista que o artigo 146 da CF prevê para essas empresas um tratamento diferenciado e favorecido, do qual resulte a aplicação de um regime centralizado e unificado, como já tive a oportunidade de me manifestar nesta coluna.
Note-se que a possibilidade de o legislador criar exceções a esse regime será objeto de julgamento, com repercussão geral, pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos do RE 632.783-RG/RO, de 2 de fevereiro de 2012.
No que diz respeito à violação ao princípio constitucional da não cumulatividade, chama atenção a vedação constante da Cláusula Terceira do Convênio 93/2015 de que créditos relativos às mercadorias adquiridas para serem comercializadas nas operações interestaduais sejam utilizados na compensação do que for devido ao estado de destino, a título de diferencial de alíquota.
De fato, a única forma de esse princípio constitucional ser preservado é por meio da absoluta viabilização da utilização dos créditos relativos à aquisição das mercadorias no estado de origem, pelo remetente, com o montante que ele tiver que recolher seja ao estado de origem (imposto calculado pela alíquota interestadual), seja ao de destino, a título de diferencial de alíquota. Do contrário, o imposto terá se cumulado nas mãos do remetente, em montante equivalente ao valor do crédito que ele não pôde utilizar.
Necessário ter-se em mente que a observância do princípio da não cumulatividade não se dá somente com a possibilidade de lançamento e manutenção do crédito relativo às aquisições feitas, mas, sim, com a disponibilização da efetiva utilização desses créditos na compensação com os débitos relativos às operações posteriores.
Note-se que é absolutamente inaplicável ao caso os precedentes jurisprudenciais que determinam que o ICMS incidente na importação, que deve ser pago por guia própria, não pode ser objeto de compensação com eventuais créditos relativos a operações anteriores realizadas pelo mesmo contribuinte.
De fato, na importação, diferentemente do que ocorre nas vendas interestaduais em exame (não presenciais), não há operações anteriores que tenham tido por objeto a circulação daquela mesma mercadoria cuja tributação ocorrerá. De fato, será por meio da importação que a mercadoria circulará pela primeira vez no país, o que justifica a impossibilidade de que créditos relativos à circulação de outras mercadorias sejam utilizados na respectiva compensação.
Nas hipóteses em exame, as mercadorias vendidas a não contribuintes localizados em outros estados são adquiridas no Brasil ou no exterior em operações normal e regularmente tributadas. Não há o que fundamente a impossibilidade de utilização dos respectivos créditos na compensação do imposto que for devido ao estado de destino, a título de diferencial de alíquota.
Conclusão diversa acarretará incontornável ofensa ao princípio constitucional da não cumulatividade.
Entre vários outros, um último aspecto que eu gostaria de abordar é a questão da definição de “destinatário”, que, da mesma forma que é de extrema importância para a definição do estado que pode ser considerado competente para a cobrança do ICMS incidente na importação (tema que já propiciou entendimentos jurisprudências extremamente controvertidos, como já abordado em coluna anterior), será também vital para determinar a que unidade da federação deverá ser recolhido o diferencial de alíquota, quando houver mais de um estado que possa ser considerado como aquele em que localizado o destinatário do bem.
De fato, se A adquire de B presente de casamento que deverá ser entregue a C, estando todos localizados em estados diversos, a que unidade da federação deverá ser recolhido o diferencial de alíquota? Ao estado em que localizado A, ou àquele em que localizado C?
Como bem salientou Bruno Lyra, na explanação que fez na ABDF, essas e outras questões demonstram que essas novas regras devem ser reguladas em lei complementar para que possam produzir os efeitos que lhe são próprios.
Não é viável que o contribuinte brasileiro, já envolvido com alguns vergonhosos recordes relativos ao número de horas com que se vê envolvido com o cumprimento de obrigações acessórias, tenha agora que iniciar o ano de 2016 com mais essa situação de absoluta insegurança jurídica.
Gustavo Brigagão é sócio do escritório Ulhôa Canto, presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro (BRITCHAM-RJ), diretor de Relações Internacionais do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) e professor em cursos de pós-graduação na Fundação Getulio Vargas.
Fonte: Revista Consultor Jurídico