CONFRONTO DAS IDEIAS - É constitucional que a Receita Federal obtenha os dados bancários dos contribuintes sem decisão judicial?
IM
Assiste-se no Brasil a um aumento da sensibilidade no tocante aos temas da corrupção e da impunidade e à necessidade de adoção de medidas visando combatê-las. É claro que os fins não justificam os meios. Em Estados Democráticos de Direito, em que se reconhecem e consagram direitos fundamentais, a tutela do indivíduo e de sua esfera privada, sua intimidade, constituem valores relevantes.
A luta contra o arbítrio deve ser uma tarefa constante, dadas as múltiplas manifestações do poder e a necessidade de sujeitá-lo ao direito. Daí a função de defesa dos direitos fundamentais, no tocante ao poder do Estado, e a condição de trunfos contra o poder e a vontade das maiorias. Mas outra dimensão relevante a considerar é a de socialidade, que impõe deveres, também previstos na Constituição, do indivíduo frente a sociedade.
Um desses deveres é o de pagar tributos. A própria Constituição prevê também, em seu art. 145, § 1o, que a administração tributária poderá, nos termos da lei, identificar “o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”. Por maioria, o STF decidiu ser constitucional norma que permite ao Fisco ter acesso a esses dados, sem necessidade de decisão judicial. Andou bem, pois não se trata de hipótese de violação do sigilo. O sigilo persiste, apenas é transferido à autoridade tributária, que deverá também mantê-lo e que responderá se houver divulgação indevida. O acesso aos dados também depende da presença de requisitos. E a Receita já tem acesso a dados relevantes do contribuinte, como sua renda e patrimônio. Não se pode, portanto, tratar o sigilo bancário como fetiche.
É claro que há de se reforçar o controle sobre o uso de tais dados pelo fisco e garantir a accountability dos agentes que passarem a deter os dados obtidos. Quem tem a temer com essa regra são aqueles que praticaram ilícitos. E a eles a Constituição não protege.
"Não se trata de hipótese de violação do sigilo. O sigilo persiste, apenas é transferido à autoridade tributária"
Eduardo Rocha Dias - eduardo.dias@agu.gov.br - Procurador Federal
NÃO
Malgrado o STF tenha julgado recentemente constitucional a possibilidade da Receita Federal obter dados bancários de contribuintes sem autorização judicial, entendo ser inconstitucional tal procedimento, porque não se coaduna com o art. 5º, X e XII e art. 60, §4º, IV, todos da CF/88, onde resta garantida ao cidadão a inviolabilidade da intimidade e o sigilo de dados, salvo por ordem judicial nesta última hipótese.
O sigilo de dados deve ser interpretado como uma das projeções do direito à intimidade (art. 5º, X, da CF/88), que possui natureza fundamental resguardada pelo art. 5º, XII, da CF/88 e com escudo no art. 145, §1º da CF/88, que restringe o poder fiscalizatório ao estabelecer o respeito aos direito individuais. E sendo o sigilo bancário um direito individual fundamental, o STF o deveria ter interpretado como um daqueles protegidos pelo rol do art. 60, § 4º, da CF, insuscetível de modificaçãos e quer por Emenda Constitucional.
Em que pese a proteção constitucional ao sigilo bancário, este, excepcionalmente, pode sofrer limitações, mas é cristalino que o sigilo deve ser a regra, e não a exceção. Havendo necessidade de quebra, cabe ao Estado, por meio do Poder Judiciário, solicitar a informação, e não o Fisco diretamente. De tudo isso, resulta que o direito ao sigilo de dados nem sempre pode se opor ao interesse público, mas sua quebra só pode advir de determinação judicial. Por isso, visualizo o afastamento da intervenção do Judiciário na concretização da medida excepcional como um passo perigoso para a quebra do Estado de Direito, pois é cediço que as garantias são postas justamente para a proteção da liberdade contra o arbítrio do Estado.
Não à toa afirmou o ministro Marco Aurélio ao término do julgamento citado: “em termos de pronunciamentos do Supremo, a semana é uma semana de tristeza maior no tocante às liberdades fundamentais”.
"O direito ao sigilo de dados nem sempre pode se opor ao interesse público; sua quebra só pode advir de decisão judicial"
Gladson Mota - gladson@motamassler.com.br - Diretor-tesoureiro da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Ceará (OAB-CE)
Fonte: Jornal O Povo