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Publicado em: 23/01/2015

Kafka e a tributação no Brasil

É lugar comum dizermos que um pensador é um clássico quando suas ideias sobrevivem ao seu próprio tempo e, como assinala o prof. Francisco Weffort, embora sendo ressonâncias de um passado, são recepcionadas por nós como parte constitutiva de nossa atualidade. Dentre esses pensadores, destacamos o tcheco Franz Kafka (1883 – 1924), que foi um grande intérprete do seu tempo e suas ideias permanecem válidas como recurso de leitura e interpretação de nossa presente realidade. Não por outro motivo, escritores brasileiros tem cada vez mais se interessado e visitado o pensamento de Kafka, resultando em uma profusão de artigos e obras publicadas, tendo em comum à análise da nossa época mediada pela sua singular e inventiva literatura. Kafka, por meio de suas histórias excêntricas, introduz o tema do absurdo como elemento de reflexão para uma sociedade construída sobre os pilares da racionalidade, talvez herança grega que modelou a arquitetura de pensamento ocidental, onde se busca sempre sentido, mediante relações silogísticas, para todas as coisas. Em vista disso, impõe-se o seguinte questionamento: será que as nossas leis buscam seu fundamento de validade no racional ou no absurdo? Guiados por essa desconcertante pergunta, verificamos que no caso da tributação no Brasil, há muito a mesma vem se distanciando do razoável, do sensato, orientando-se por uma lógica que mais parece ser a do absurdo, que configura o universo literário de Kafka.

O saudoso tributarista Alfredo A. Becker, na década de 1970, já apontava para a incoerência do nosso sistema, rotulando-o de manicômio tributário. Possuímos mais de 60 espécies tributárias, dentre impostos, taxas e contribuições, o que demanda um complexo entulho de normas (em média 34 novas normas por dia) para disciplinar as relações delas resultantes, além de uma burocrática gestão tributária, que consome, em média, conforme estudo conjunto do Banco Mundial e a consultoria PricewaterhouseCoopers, o dispêndio de 2.600 horas anuais no cumprimento das obrigações fiscais. Só para registro, o mesmo estudo informa que a média mundial é de 277 horas anuais. O quão distante estamos do mundo dos normais! Ademais, é desesperador, em face desse cenário, vermos governos após governos serem legitimados com a promessa de uma reforma tributária, que não sai do campo das intenções, sendo, irresponsavelmente, postergada. A despeito dessa constatação, não podemos ser ingênuos a ponto de querer uma reforma que ataque todos os problemas do sistema tributário nacional de uma só vez, pois reconhecemos que as “revoluções tributárias”, ou alterações abruptas no atual modelo, seriam feitas ao arrepio das tradições do país na área fiscal, combinado com o risco de uma séria desorganização do nosso sistema produtivo em decorrência do seu impacto nos preços relativos da economia. No entanto, urge construirmos uma trajetória de mudanças que pavimente para o Brasil um caminho que viabilize contínuas evoluções no seu sistema de tributos, o que se impõe diante das transformações econômicas que vêm ocorrendo em escala mundial. Portanto, se ambicionamos construir uma sociedade moderna que se estruture sobre o fundamento da razão, precisamos escapar do labirinto kafkiano da complexidade absurda, onde somos confrontados com a impossibilidade de escolher um caminho que seja sensato e lógico, ou continuaremos perdendo a batalha para a banalidade em que se tornou a nossa confessa violência irracional contra o bom senso e a razoabilidade na seara tributária. Em suma, é imperioso virarmos essa página, escrevendo uma nova com o intuito de conduzirmos a nossa história a um fim diferente das de Kafka. De outro modo, ficaremos com a permanente sensação de impotência diante de uma realidade sem sentido que conspira contra aquilo que nos diferencia no mundo, a capacidade de traçar, com coerência, o nosso próprio destino.

Fonte: Afites