JUSTIÇA TRIBUTÁRIA - A dívida ativa da União e o sonho inútil de uma noite mal dormida
Por Raul Haidar
As altas autoridades de Brasília dormem muito mal. Ou permanecem insones, a vociferar impropérios em acalorados monólogos, ou acabam submetendo-se a medicamentos que lhes causam terríveis efeitos colaterais (alucinações, pesadelos, fortes diarreias etc), privando-as da capacidade de formular ideias claras, com o que surpreendem seus interlocutores submetidos a torturantes exercícios de raciocínio para tentar adivinhar o que ouvem ou leem.
Tal quadro se nos apresentou recentemente quando vimos que o Ministério da Fazenda divulgou uma lista que identifica os nomes dos 500 maiores devedores do fisco, responsáveis por supostos débitos de quase R$ 400 bilhões! Na mesma matéria, publicada no jornal O Estado de S. Paulo de 14 de outubro, informa-se que pretende o governo utilizar parte dessa dívida para compor um fundo cujas cotas seriam vendidas no mercado financeiro. Deseja-se com isso “pressionar os devedores, ao criar um constrangimento público”.
De Plácido e Silva, em seu Vocabulário Jurídico (Forense, Rio de Janeiro, 3ª. edição, 1967) registra:
“Constrangimento = De constranger, do latim constrangere (apertar, prender, ligar), é aperto, embaraço, acanhamento, violência, força. Mas, em conceito propriamente jurídico, é o ato pelo qual uma pessoa obriga outra a fazer o que não pretende ou não quer fazer, ou a obriga a não fazer o que era de seu desejo ou de seu interesse.”
A reportagem revela também que boa parte dos débitos já está parcelada e da mencionada lista constam empresas desativadas ou sem patrimônio.
Uma análise ainda que superficial desse alegado projeto de criação de um “fundo de recebíveis” para ser vendido a terceiros, torna clara sua inviabilidade prática. Nada mais é que “aperto, embaraço, acanhamento, violência, força”, enfim, simples tentativa de constrangimento inútil, capaz de se transformar em mais um incentivo ao desenvolvimento industrial do Paraguai ou do Uruguai.
A dívida pública, uma vez inscrita e assim considerada líquida e certa deve ser imediatamente cobrada. Para isso existe uma bem estruturada equipe de advogados públicos, que recebe bons salários e demais vantagens do cargo.
As pessoas desinformadas, que compõem a maioria da nossa população, talvez se deixem impressionar pelos números da reportagem e possam supor que as empresas apontadas pelo fisco como devedoras sejam “sonegadoras” ou simplesmente caloteiras, que deixam de pagar os tributos devidos para usá-los como capital próprio na especulação.
Caso fossem caloteiras, jamais estariam na categoria dos nossos governos, estes sim os maiores caloteiros das galáxias, a calotear aposentados, credores de precatórios, fornecedores etc. Disse-me um carioca, em setembro, que a Casa da Moeda está a atrasar pagamentos, alegando falta de dinheiro! Deve ser anedota, por certo, já que os cariocas são muito engraçados e além disso estávamos num bar.
Nossos leitores, porém, sabem que a coisa não é bem assim. Em boa parte dos casos as dívidas tributárias resultam de lançamentos indevidos, não raras vezes frutos de atos ilícitos. As empresas que sejam minimamente organizadas ou que se sujeitem a auditorias são obrigadas a defender-se desses lançamentos errados ou injustos, utilizando-se para isso de todos os recursos legais.
O fato de que a maioria das decisões em recursos administrativos são favoráveis ao fisco não legitima as autuações, pois é pública e notória a parcialidade desses julgamentos. Isso resulta numa enxurrada de discussões judiciais, onde o contribuinte já começa em desvantagem, com depósitos ou penhora de bens. Isso, efetivamente, não é Justiça.
A quantidade de processos é tão absurda, que acaba por gerar fatos ainda mais absurdos, como a ocorrência de prescrição intercorrente, nas hipóteses em que a execução permanece por mais de cinco anos sem movimento. A carga de trabalho dos servidores públicos encarregados da cobrança da dívida é desumana!
Registre-se que uma eventual venda dos créditos tributários pode servir para a criação de um mercado paralelo criminoso, onde espertalhões de todos os tipos tentarão tirar vantagem do contribuinte. Isso já acontece com créditos “podres” do mercado financeiro.
Recentemente um senhor idoso, ex-empresário, recebeu e-mail de um escritório de advocacia que pretendia cobrar uma divida bancária cujo valor atual seria de quase R$ 1 milhão. O credor (banco) estava disposto a conceder um desconto de R$ 975 mil! O devedor poderia pagar apenas R$ 25 mil e assim livrar-se da dívida! No caso, o ex-empresário, agora aposentado, teve a brilhante ideia de consultar um advogado. Depois de constatar que a dívida estava vencida a mais de 20 anos, o advogado informou a ocorrência da prescrição e sugeriu ao cliente que em novo contato, fornecesse seu telefone para que o ilustre colega ligasse. Claro que a tentativa de cobrança indevida parou por ali. Mas os compradores de créditos podres fazem leilões com bancos e muitos créditos prescritos são pagos por falta de cuidado do devedor e falta de caráter do advogado que resolveu ignorar a lei e cometer a infração ética prevista no artigo 34, inciso VI do Estatuto da OAB.
O tal projeto de venda de dívida ativa está em desacordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101 de 4 de maio de 2000) especialmente quanto aos seus artigos 14 e 61. O artigo 14 trata da renúncia de receita e o artigo 61 diz:
“Art. 61. Os títulos da dívida pública, desde que devidamente escriturados em sistema centralizado de liquidação e custódia, poderão ser oferecidos em caução para garantia de empréstimos, ou em outras transações previstas em lei, pelo seu valor econômico, conforme definido pelo Ministério da Fazenda.”
Oferecer título como garantia de empréstimo não é o mesmo que transferir sua titularidade e a Lei Complementar 101 não pode ser alterada por norma de hierarquia inferior. Ademais, ao ordenar que o título, mesmo quando caucionado, deve levar em conta seu valor econômico, verificamos que a formação de um fundo para venda no mercado financeiro dificilmente se viabiliza.
Por maior que seja o desespero do Ministério da Fazenda para tentar cobrir os rombos orçamentários, não será com esse sonho alucinado de uma noite mal dormida que alcançará qualquer objetivo. Parece que a curto prazo o que resta mesmo é o projeto de anistia para o retorno de valores depositados no exterior. Ou tomar remédios mais fortes para dormir pelos próximos dois anos.
Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Fonte: ConJur