RIO GRANDE DO SUL: Dívida Ativa Tributária - onde paira a escuridão
Artigo do diretor de Comunicação da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco) publicado originalmente no jornal Diário do Pará em 06 de março de 2016
O pensamento consagrado de que o mundo não se move pelas respostas, mas pelas perguntas, não invalida a busca incessante do ser humano pelas respostas, porque estas também fazem girar a roda da história.
Se é válido o pensamento de Einstein, segundo o qual o importante é não deixar de fazer perguntas, é igualmente legítimo afirmar que as perguntas só adquirem importância se estiverem comprometidas com a busca das respostas.
Pergunta descomprometida com resposta não é pergunta. Logo, não tem importância alguma.
À administração pública, por exemplo, fundada nos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, incumbe, por imposição constitucional, responder aos reclamos, às necessidades e às perguntas da sociedade.
Se a administração pública já se vê originalmente regida pelo princípio constitucional da publicidade, a Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação - LAI) prestigiou radicalmente o paradigma da transparência pública, estabelecendo que, doravante, o acesso às informações é a regra, enquanto o sigilo é a exceção.
A minha condição de auditor fiscal de Receitas Estaduais do Estado do Pará, se me permite formular perguntas que dificilmente seriam formuladas pela maioria dos cidadãos, dada a especialidade da minha atuação profissional, em nada me distingue da coletividade quanto às possíveis respostas, tamanho é o grau de secretismo que se atribui a informações de caráter absolutamente público e que deveriam inclusive estar à disposição da sociedade, independente de solicitação.
A Lei nº 5.172/1966, denominada Código Tributário Nacional (CTN), dispõe, nos artigos 198 e 199, sobre o sigilo fiscal, vedando à Fazenda Pública e aos seus agentes – inclusive sob pena de responsabilização criminal - a divulgação de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.
Mas a regra do sigilo fiscal comporta exceções, entre as quais eu destaco a expressamente referida no artigo 198, § 3º, inciso II: inscrição em dívida ativa.
De acordo com o CTN, portanto, as inscrições em dívida não estão protegidas pelo sigilo fiscal.
Grosso modo, a dívida ativa (falo em matéria tributária) refere-se às dívidas gravadas em nome de pessoas físicas ou jurídicas em favor da Fazenda Pública, inscritas depois de esgotados todos os recursos na esfera administrativa.
Mais de R$ 9 bilhões é o montante da dívida ativa tributária em favor do Estado do Pará, dos quais seguramente mais de R$ 8 bilhões referem-se ao ICMS.
Cerca de noventa por cento desses mais de R$ 8 bilhões são provenientes de Autos de Infração lavrados pelos agentes do fisco: auditores e fiscais de receitas estaduais.
O Ministério da Fazenda divulga a lista dos contribuintes inscritos na dívida ativa tributária da União. A divulgação foi disciplinada pela Portaria nº 721/2012 e está sob a gestão da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.
Qualquer cidadão – friso, qualquer cidadão! – pode acessar (www.pgfn.gov.br) a lista dos devedores ativos da União.
A Procuradoria-Geral do Estado do Pará, na qualidade de órgão de representação judicial do Estado, é a responsável pela execução fiscal da dívida ativa tributária estadual.
A propósito, a dívida ativa tributária do Pará padece da combinação de dois graves problemas: secretismo e gestão ineficiente.
Dizer que a gestão da dívida ativa tributária é ineficiente (recordemos de um dos princípios constitucionais que regem a administração pública) nem mesmo consegue traduzir o quão pífia é a recuperação da dívida ativa no Pará, que se avoluma ano após ano.
O desempenho dos anos de 2013 e 2014 (não estão consolidados os números de 2015) expõe a gravidade do problema.
De um lado, em 2013, mais de R$ 1, 5 bilhão em créditos tributários mantidos na esfera administrativa - fruto de autuações fiscais – e lançados em dívida ativa, pelo Fisco. Em 2014, outros R$ 880 milhões. Mais de R$ 2,3 bilhões, em apenas dois anos.
Por outro, em 2013, míseros R$ 95 milhões arrecadados sob a rubrica “recuperação de dívida ativa tributária”. Em 2014, R$ 103 milhões.
Em termos proporcionais, a recuperação de dívida ativa tributária é desprezível em relação ao estoque acumulado (mais de R$ 9 bilhões) e inexpressiva em relação à receita própria anual.
Em tempos de bonança, essa constatação já seria preocupante e exigiria medidas drásticas. Em tempos de crise e diante de todas as restrições orçamentárias impostas à sociedade paraense, esse descalabro nos expõe de forma vexatória.
Não enfrentar essa grave deficiência do poder público estadual pode ser tipificado como grave omissão, prevaricação, desídia.
Mas, como nada está tão ruim que não possa piorar, paira a escuridão sobre a gestão da dívida ativa.
Nenhum cidadão – nem mesmo um servidor do fisco estadual – sabe quem são os devedores da sociedade paraense. Exagerei, confesso: poucos, pouquíssimos (procuradores e alguns servidores do fisco) sabem.
A quem interessa manter essa informação em segredo? Eis a primeira pergunta para mover o mundo. Mas há mais perguntas.
Contra quais desses devedores houve o devido ajuizamento de ação de execução fiscal?
A sociedade paraense perdeu recursos provenientes de dívida ativa, em razão de prescrição? Qual o montante dessa perda, por prescrição?
Qual o resultado das ações de execução fiscal?
Demonstro a escuridão que paira sobre a gestão da dívida ativa tributária, lançando luz (e perguntas) sobre um caso que vem sendo questionado inclusive pelo promotor de Justiça de Crimes Contra a Ordem Tributária, dr. Francisco Lauzid.
Vamos ao caso, não sem antes advertir para o fato de que os números aqui apresentados são aproximados, exatamente porque cercados de mistério.
Imagine que uma tradicional cervejaria paraense tenha contra si uma dívida ativa de mais de R$ 370 milhões, exclusivamente de ICMS, acumulada em razão de uma sucessão de autos de infração lavrados pelas autoridades fiscais.
Imagine que entre os meses de agosto e setembro de 2014, um procurador do Estado encarregado da execução fiscal ou negociação dessa dívida tenha celebrado um “Acordo de Penhora de Faturamento”, devidamente homologado no Judiciário, em cujas cláusulas foi consignado que o pagamento da dívida seria feito mediante a penhora de 4% (quatro por cento) do faturamento mensal do devedor.
Imagine que, em razão do Acordo, o devedor venha recolhendo aos cofres públicos em torno de R$ 1.250.00,00 (Um milhão, duzentos e cinquenta mil reais) por mês, o que resulta num valor acumulado de R$ 22.500,00 (Vinte e dois milhões e quinhentos mil reais), considerando o período de dezoito meses: setembro de 2014 (mês de início do Acordo) a fevereiro de 2016.
Considerando que sobre o montante da dívida ativa tributária aplicam-se juros e atualização monetária, resta óbvio que a dívida objeto do Acordo entre o procurador (representante do Estado) e o devedor, não permanece estagnada no seu valor histórico.
Um cálculo superficial e sem rigor técnico revela um assombro: a dívida jamais será paga!
Abatidos os R$ 22.500.000,00 pagos pelo devedor, a dívida, ao invés de estar sendo saldada, está aumentando, uma vez que o valor desembolsado mensalmente pelo devedor não cobre sequer a atualização monetária do período.
A dívida, hoje, já supera a casa dos R$ 400 milhões.
Quem vai pagar essa conta?
Quem responde por esse tipo de Acordo?
Quem controla e fiscaliza a qualidade e a efetividade desse tipo de negociação?
Vamos adiante.
Imagine que essa empresa, embora devedora contumaz, ainda goze de benefícios fiscais que importem em redução do valor do pagamento do imposto devido.
E tem mais.
Imagine que, além dos R$ 370 milhões “parcelados”, essa empresa tenha contra si mais R$ 1 bilhão em dívida ativa.
Deu pra imaginar?
Afinal, isto é real ou fruto da minha imaginação?
Enquanto isso, pendências salariais com os professores; caos na educação e na saúde; contingenciamento de recursos para serviços públicos básicos; saneamento precário; falta de segurança; alagamentos; ruas esburacadas, e por aí vai.
Quem se habilita a responder?
Fonte: Afisvec