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As ideias defendidas nos artigos publicados neste Blog são de responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a posição institucional da Auditece.

 

Publicado em: 07/01/2025

INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 12 DA LEI 19.139/2024 DO ESTADO DO CEARÁ – IMPOSSIBILIDADE DA DECADÊNCIA DE CRÉDITOS DE ICMS ACUMULADOS E REGULARMENTE ESCRITURADOS

Por José Ribeiro Neto

  1. EXPOSIÇÃO DA MATÉRIA

Na data de 20 de dezembro de 2024 foi publicada a Lei 19.139/2024, a qual, dentre outras matérias, estabeleceu o seguinte em seu art. 12:

Art. 12. O direito de utilizar os saldos credores de ICMS acumulados extingue-se depois de decorridos 5 (cinco) anos contados da data de emissão do documento fiscal.

Parágrafo Único. Transcorrido o prazo de que trata o caput deste artigo sem que o contribuinte tenha utilizado o crédito, ocorrerá a decadência desse direito.”

Observa-se, do acima transcrito, que foi estabelecido um marco temporal para que os contribuintes do ICMS, regularmente inscritos no Cadastro de Contribuintes da Secretaria da Fazenda do Estado do Ceará (SEFAZ/CE), possam exercer o seu direito de utilizar os saldos credores do imposto acumulados na sua escrituração fiscal, mais especificamente no livro Registro de Apuração do ICMS.

De acordo com o caput do art. 12 supra, esse marco temporal será de 5 (cinco) anos, contados da data de emissão do documento fiscal relativo à aquisição de mercadorias ou insumos ou, ainda, relativo à utilização de serviço de transporte interestadual ou intermunicipal ou de comunicação.

 

Impende ressaltarmos que o dispositivo faz referência a saldos credores acumulados do ICMS, o que significa, pura e simplesmente, que os documentos fiscais em questão foram escriturados nos livros “Registro de Entradas” e no livro “Registro de Apuração do ICMS, bem como as mercadorias entraram no estabelecimento do contribuinte ou os serviços já foram prestados, sendo, portanto, perfeitamente legítimos os mencionados créditos.

De lembrar que, o contribuinte do ICMS, após receber as mercadorias ou utilizado os serviços prestados, se credita do ICMS destacado no respectivo documento fiscal e vai acumulando de forma sucessiva na “Conta Gráfica do ICMS”, até a total extinção do “saldo credor”.

Por óbvio, essa situação pode se prolongar por tempo indefinida, caso o contribuinte sempre acumule os créditos, a exemplo daqueles contribuintes que exportam mercadorias para o exterior do País, haja vista que as saídas subsequentes dessas mercadorias para o exterior do País gozam de imunidade, o que lhes permitem apresentar “saldos credores” continuados nos sucessivos períodos de apuração.

A mesma situação pode ocorrer com os contribuintes que possuem benefícios fiscais nas operações e prestações subsequentes, como isenção ou redução da base de cálculo do ICMS, acumulando sucessivos “saldos credores”, desde que a respectiva legislação tributária permita a manutenção, total ou parcial, dos créditos apropriados em decorrência das operações e prestações anteriores.

Todavia, a nosso sentir, a regra especificada no art. 12

supra é absolutamente inconstitucional.

É o que demonstraremos a seguir, partindo de duas premissas essenciais: a) princípio da não cumulatividade do ICMS (art. 155, § 2.º, incisos I e II, da Constituição Federal); e b) competência de lei complementar para definir as regras gerais relativas ao crédito tributário (art. 146, inciso III, alínea “c”, da Constituição Federal).

 
  1. – PRINCÍPIO DA NÃO CUMULATIVIDADE DO ICMS E O DIREITO AO ACÚMULO DE CRÉDITOS

Via de regra, o ICMS é um imposto não cumulativo, o que significa que se compensa o imposto destacado nos documentos fiscais relativos às operações e prestações anteriores com o imposto devido nas operações e prestações posteriores (art. 155, § 2º, incisos I e II, da Constituição Federal).

Assim, quando um contribuinte do ICMS adquire mercadorias, ele se credita do ICMS destacado na nota fiscal de compra. Esse crédito é utilizado para abater o ICMS devido nas operações de saída (débitos).

Nos exemplos acima, as saídas não geram débitos suficientes para extinguir os créditos. Consequentemente, esses contribuintes acumulam créditos de ICMS. Esse acúmulo, pelo princípio da não cumulatividade, é legítimo e inerente à sistemática de apuração do imposto, a denominada “Conta Gráfica do ICMS”.

Nessa linha de raciocínio, é absolutamente inconstitucional qualquer tentativa de restringir o direito à apropriação dos créditos acumulados, o qual se consumou por ocasião da escrituração dos documentos fiscais que geraram tais créditos.

De lembrar que a decadência, nos termos do art. 173 do Código Tributário Nacional (CTN), extingue o direito do Fisco de constituir o crédito tributário, isto é, o lançamento, nos termos definidos no art. 142, também do CTN.

No caso dos créditos do ICMS, o direito já foi constituído no momento da escrituração do documento fiscal, seja o relativo às aquisições de mercadorias ou insumos, seja o relativo à utilização de serviços de transporte interestadual ou intermunicipal ou de comunicação.

Entretanto, o que está em questão, na verdade, não é o direito de constituir os créditos do ICMS – pois a sua

 

constituição foi consumada –, porém sim o direito de utilizá- los para compensar com os débitos futuros do mesmo contribuinte, independentemente de um marco temporal.

Aplicar o instituto da decadência nesses casos significa, simplesmente, impedir os contribuintes de exercerem um direito legítimo, que é a compensação de créditos acumulados em decorrência de suas atividades, o que fere o princípio da não cumulatividade.

Imagine um contribuinte do ICMS exportador de mercadorias para o exterior do País que acumula créditos de forma constante. Se a cada cinco anos esses créditos forem considerados extintos pela decadência, esse contribuinte estará sendo duplamente tributado, pois não poderá compensar o imposto pago nas operações e prestações anteriores com o imposto devido nas operações ou prestações subsequentes.

De ressaltar que a decadência dos créditos do ICMS somente poderia ser caracterizada na hipótese de o contribuinte escriturar o documento fiscal, com o ICMS nele destacado, após o transcurso de cinco anos, contados a partir do dia seguinte ao de sua emissão.

 

 

  1. – DISTINÇÃO ENTRE DIREITO À APROPRIAÇÃO DOS CRÉDITOS DO ICMS E DIREITO À ACUMULAÇÃO DESSES CRÉDITOS

Impende analisarmos, aqui, a natureza jurídica dos créditos do ICMS acumulados e a interpretação do instituto da decadência no contexto do art. 12 da Lei 19.139/2024.

A decadência, nos termos do art. 173 do CTN, como acima referenciado, diz respeito à perda do direito de constituir o crédito tributário ou de exercer determinado direito em razão do decurso do tempo. No caso dos créditos do ICMS acumulados, é importante apontarmos a distinção entre o direito de apropriação dos créditos via escrituração nos livros fiscais próprios (ReGistro de Entradas e Registro de Apuração

 

do ICMS) e o direito de utilização dos créditos acumulados do ICMS.

No tocante ao direito de apropriação dos créditos via escrituração nos livros fiscais próprios (Registro de Entradas e Registro de Apuração do ICMS), esse direito ocorre no momento da entrada da mercadoria no estabelecimento do contribuinte, real ou simbólica, ou na utilização de serviço de transporte interestadual ou intermunicipal ou de comunicação, bem como a regular escrituração do respectivo documento fiscal.

De outra sorte, o direito de utilização dos créditos acumulados do ICMS se perfaz por ocasião da escrituração do documento fiscal nos livros Registro de Entradas e Registro de Apuração do ICMS e consequente compensação desse crédito com débitos futuros de ICMS ou, ainda, nos casos de transferência de mercadorias ou solicitação de ressarcimento do débito, seja em razão da não ocorrência do fato gerador ou quando a base de cálculo presumida, no Regime de substituição Tributária, for maior do que a operação efetivamente realizada.

Nessa linha de raciocínio, o art. 12 da Lei 19.139/2024, ao determinar a extinção dos saldos credores acumulados do ICMS após o transcurso de cinco anos, contados da emissão do respectivo documento fiscal que gerou os créditos do ICMS, incorre em flagrante inconstitucionalidade.

Via de regra, o contribuinte que recebe mercadorias ou utiliza uma prestação de serviço, seja de transporte interestadual ou intermunicipal seja de comunicação, com o ICMS destacado no respectivo documento fiscal, se credita imediatamente do imposto. A partir desse momento, o crédito é escriturado no Sistema de Escrituração Fiscal Digital (SPED), mais especificamente nos livros “Registro de Entradas” e “Registro de Apuração do ICMS”, e compõe o saldo credor desse contribuinte, tornando fato consumado o direito à apropriação dos créditos do ICMS.

 

Esse saldo credor, por sua vez, é utilizado para compensar débitos futuros ou, em casos específicos, fica acumulado e será transportado para o período ou períodos de apuração seguintes, conforme previsão do caput do art. 68, seu § 9º, da Lei do ICMS/CE (Lei nº 18.665/2023), abaixo transcrito:

Art. 68. O mês será o período considerado para efeito de apuração e lançamento do ICMS, com base na escrituração em conta gráfica.

(...)

§ 9º O saldo credor:

    1. é transferível para o período ou períodos seguintes, ou, ainda, compensável com saldo devedor de estabelecimento do mesmo sujeito passivo localizado neste Estado, observado o disposto no art. 83;
    2. salvo o disposto na legislação, somente poderá ser utilizado para fins de compensação com débitos regularmente declarados pelo contribuinte em sua escrituração, observado, ainda, o disposto no art. 75 e no inciso I do § 5º do art. 146;
    3. não é passível de atualização monetária. (Grifamos)

De lembrar que o dispositivo supra é uma reprodução quase literal das disposições previstas no art. 24 da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir). Portanto, além da compensação dos créditos com os débitos do mesmo estabelecimento do contribuinte, há a possibilidade de eventuais saldos credores, apurados na Conta Gráfica do ICMS, serem transferidos para outros estabelecimentos do mesmo contribuinte. A interpretação literal do dispositivo poderia resultar em perda do crédito mesmo que ele tenha sido regularmente escriturado, o que gera um conflito com princípios constitucionais e jurisprudência consolidada.

 

De observar que o inciso I do § supra faz referência à possibilidade de o contribuinte poder transferir o saldo credor para os períodos seguintes, sem qualquer limitação temporária, haja vista que esse saldo credor é um direito público subjetivo do próprio contribuinte, em sintonia com o princípio da não cumulatividade do ICMS (incisos I e II do § do art. 155 da Constituição Federal).

 

 

    1. COMPETÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR NA DEFINIÇÃO DAS REGRAS GERAIS RELATIVAS AO CRÉDITO

O a alínea “c” do inciso III do art. 146 da Constituição Federal estabelece que normas gerais sobre o ICMS devem ser reguladas por lei complementar. A definição de decadência, extinção de créditos acumulados e a regulação do uso desses créditos se inserem, indubitavelmente, no conceito de normas gerais.

A Lei Complementar nº 87/1996 (lei Kandir), editada para definir as regras gerais relativas ao ICMS, nos termos do inciso III do art. 146 e outros dispositivos da Constituição Federal, prevê expressamente no seu art. 23 que "ressalvados os prazos estabelecidos em lei complementar, não se extinguem pelo decurso do tempo os créditos do imposto regularmente escriturados".

Logo, a tentativa de uma lei estadual, como a Lei 19.139/2024, de dispor sobre a extinção de créditos acumulados por decadência invade a competência de lei complementar e, portanto, caracteriza flagrante inconstitucionalidade, com respaldo nos seguintes precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

      • ADI nº 2441 do STF: por meio dessa decisão, o STF já reconheceu a inconstitucionalidade de leis estaduais que tentam dispor sobre normas gerais de ICMS sem observância da reserva de lei complementar;
      • RE nº 439.796/PR do STF: nessa outra decisão, o STF entendeu que créditos regularmente escriturados de
 

ICMS não podem ser extintos por decurso do tempo de forma arbitrária por leis estaduais;

      • REsp nº 1.111.164/SP do STJ: o STJ reafirmou o entendimento de que o crédito de ICMS escriturado se incorpora ao patrimônio jurídico do contribuinte, não podendo ser desconsiderado ou extinto por normas infralegais ou estaduais.

 

 

IV - CONCLUSÕES

Com   base   nas   premissas  acima                      demonstradas, chagamos às seguintes conclusões:

  1. natureza constitucional dos créditos acumulados do ICMS: os incisos I e II do § 2º do art. 155 da Constituição Federal garantem aos contribuintes do ICMS o direito de compensar créditos do imposto, oriundos das operações e prestações anteriores, com os débitos das operações e prestações seguintes (Princípio da não Cumulatividade). Os créditos acumulados, existentes na Conta Gráfica do ICMS no estabelecimento dos contribuintes, não pode ser extinto pelo simples decurso do tempo, uma vez que os documentos fiscais relativos a esses créditos foram devidamente escriturados nos livros fiscais próprios (Registro de Entradas e Registro de Apuração do ICMS). A extinção, motivada pela decadência, somente ocorre na hipótese de não ter havido a escrituração no prazo de cinco anos, contados a partir do dia seguinte ao da emissão do documento fiscal;
  2. momento da decadência: a decadência prevista nos arts. 150, § 4º, e.173 do CTN faz referência ao lançamento do crédito tributário ou ao direito de constituí-lo. No caso do ICMS, o crédito é constituído no momento da entrada da mercadoria e da escrituração do respectivo documento fiscal nos livros Registro de Entradas e Registro de Apuração do ICMS. A perda desse crédito, portanto, ocorreria se o contribuinte não o escriturasse no prazo decadencial. Uma vez escriturado regularmente o documento fiscal, o direito ao crédito resta consumado, momento que passa a integrar o ativo fiscal do contribuinte;
 
  1. crédito escriturado e a regra de exportações de mercadorias para o exterior do País: via de regra, o contribuinte que exporta mercadorias para o exterior do País costuma acumular créditos de ICMS, haja vista que estes são maiores do que os débitos de ICMS, e a Constituição Federal garante a imunidade do imposto nessas operações, bem como a manutenção desses créditos (alínea “a” do inciso X do

§ 2º do art. 155). Assim, o saldo credor proveniente de operações de exportação para o exterior do País fica protegido, não podendo ser extinto por lei estadual, sob pena de ofensa à Constituição Federal e à Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir);

  1. jurisprudências do STF e do STJ: tanto o STF como o STJ possuem precedentes afirmando que o crédito de ICMS, uma vez regularmente constituído, não pode ser extinto sem violar o princípio da não cumulatividade. O Estado não pode criar obstáculos ao uso desse crédito além dos previstos na Constituição Federal e na Lei Kandir;
  2. violação ao princípio da não cumulatividade: a não cumulatividade do ICMS é um princípio fundamental do tributo. Permitir a decadência de créditos regularmente escriturados viola esse princípio, criando uma oneração indireta sobre a cadeia produtiva;
  3. interpretação conforme a Constituição Federal: a melhor interpretação seria entender que o art. 12 da Lei nº 19.139/2024 não se aplica aos créditos acumulados em decorrência de operações que geram direito à manutenção do crédito, como as exportações para o exterior do País. A norma deveria ser interpretada de forma a não conflitar com o princípio da não cumulatividade;
  4. ação judicial: caso a Fazenda Estadual aplique a decadência aos créditos acumulados, o contribuinte poderá questionar a legalidade da norma judicialmente, alegando a violação ao princípio da não cumulatividade, da competência da lei complementar e à própria sistemática de apuração do imposto (Conta Gráfica do ICMS).
 

Portanto, a aplicação literal do art. 12 da Lei 19.139/2024 aos créditos acumulados de ICMS, especialmente por exportadores e por outros contribuintes cuja manutenção dos créditos é permitida pela legislação tributária, é absolutamente inconstitucional, por ferir os princípios acima referenciados.

Autores
José Ribeiro Neto
ICMS Tributação decadência Legislação Tributária Ceará