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As ideias defendidas nos artigos publicados neste Blog são de responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a posição institucional da Auditece.

 

Publicado em: 04/08/2025

Ausência de penalidade na LC214/2015 impede cobrança de multa via Auto de Infração

José Ribeiro Neto*

 

I – EXPOSIÇÃO DA MATÉRIA

A promulgação da Lei Complementar nº 214/2025 representa um marco histórico no Sistema Tributário Nacional.

Pela primeira vez, uma única lei complementar institui, de forma simultânea, três tributos de competências distintas, a saber: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS); a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS); e o Imposto Seletivo (IS), com fundamento direto no inciso I do caput do art. 150 da Constituição Federal, que exige lei para a instituição ou majoração de tributo, e em sintonia com a Emenda Constitucional nº 132/2023, que alterou diversos dispositivos da Constituição Federal.

Contudo, apesar do avanço institucional representado por esse novo modelo tributário, a LC nº 214/2025 apresenta uma omissão normativa grave: não disciplina as penalidades aplicáveis às infrações cometidas pelos sujeitos passivos, seja quanto às obrigações principais, seja quanto às acessórias. Essa lacuna compromete seriamente a legitimidade de futuras constituições do crédito tributária via lançamento de ofício, em especial mediante lavratura de autos de infração, o que coloca em risco o respeito ao princípio da legalidade estrita em matéria tributária.

É o que será demonstrado no presente artigo de opinião.

II – A NATUREZA JURÍDICA DA LC Nº 214/2025 COMO LEI INSTITUIDORA DE TRIBUTOS

Diferentemente das tradicionais leis complementares editadas com base no art. 146 da Constituição Federal, que cuidam de normas gerais de direito tributário (como a definição de fatos geradores, contribuintes e bases de cálculos dos impostos, as obrigações, o lançamento, a prescrição e a decadência do crédito tributário), a LC nº 214/2025 foi editada com fundamento no inciso I do caput do art. 150 da Constituição Federal, que veda a exigência de tributo sem lei que o institua.

Trata-se, pois, de lei instituidora de tributos, a exemplo da futura lei complementar que vier a instituir o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), previsto no inciso VII do caput do art. 153 da Constituição Federal.

Assim, a LC nº 214/2025 confere existência jurídica aos tributos que lhe são objeto, definindo suas hipóteses de incidência, bases de cálculo, alíquotas, sujeição passiva e regras de arrecadação e partilha. Não se trata, portanto, de norma geral, nos moldes do Código Tributário Nacional (CTN), porém sim de lei complementar material e formalmente instituidora do IBS, da CBS e do Imposto Seletivo.

 

III – A OMISSÃO QUANTO ÀS PENALIDADES: AFRONTA À LEGALIDADE TRIBUTÁRIA

Nada obstante sua função instituidora, a LC nº 214/2025 não prevê qualquer penalidade aplicável às infrações à legislação do IBS, da CBS e do Imposto Seletivo.

Nenhuma multa de mora, de ofício, por descumprimento de obrigação tributária, seja principal ou acessória de que trata o art. 113 do CTN, foi incluída em seu texto.

Essa omissão viola frontalmente o princípio da legalidade tributária, previsto no próprio inciso I do caput do art. 150 da Constituição Federal, bem como o disposto no inciso V do caput do art. 97 do CTN.

Com efeito, a combinação do art. 150, inciso I, da CF/1988, que exige lei específica para instituir ou aumentar tributo, com o art. 97, inciso V, do CTN, que estabelece que somente a lei pode cominar penalidades, revela uma regra de reserva legal qualificada: não apenas a criação do tributo, mas também a definição das infrações e penalidades deve constar da lei instituidora do tributo, no caso, a própria LC nº 214/2025, que disciplinou praticamente rodos os elementos da regra-matriz de incidência tributária do IBS, da CBS e do Imposto Seletivo, conforme doutrina de Paulo de Barros Carvalho e Luciano Amaro.

Se a LC 214/2025 foi omissa quanto à definição de penalidades para as infrações a seus dispositivos e aos regulamentos expedidos com base nela, não será possível suprir essa lacuna por meio de resoluções do Comitê Gestor, decretos do Poder Executivo ou outras normas infralegais, isso porque:

  1. o art. 97, inciso V, do CTN exige lei específica do próprio ente tributante para a cominação de penalidades;
  2. o art. 99 do CTN veda expressamente que normas infralegais regulamentadoras, a exemplo de decretos e resoluções, inovem quanto ao conteúdo das leis tributárias;
  3. o princípio da legalidade estrita em matéria tributária, previsto no art. 150, inciso I, da Constituição, reforça essa exigência;
  4. o Comitê Gestor, embora exerça função normativa regulamentar, não tem competência para inovar em matéria de penalidade tributária, sob pena de usurpação da competência legislativa do Congresso Nacional.

Assim, qualquer penalidade relacionada ao IBS, à CBS ou ao Imposto Seletivo que venha a ser criada sem respaldo direto na própria LC 214/2025 será materialmente inconstitucional e ilegal, por violar a reserva de lei complementar e a legalidade estrita tributária.De ressaltar, ainda, que a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça impede que penalidades tributárias sejam criadas por normas infralegais (como decretos ou resoluções), sob pena de inconstitucionalidade formal.

IV – IMPOSSIBILIDADE DE SUPRIMENTO DA LACUNA POR RESOLUÇÕES OU DECRETOS

Após a edição da LC nº 214/2025, remanesce aos entes federativos o papel de regulamentar sua aplicação prática. Isso ocorrerá, no caso do IBS, por meio de resoluções do Comitê Gestor, composto por representantes dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Quanto à CBS e ao Imposto Seletivo, caberá à União a edição de decretos presidenciais que operacionalizem esses novos tributos.

Contudo, tanto o Comitê Gestor quanto o Presidente da República não detêm competência normativa para criar ou fixar penalidades tributárias. Isso decorre da própria separação entre as funções instituidora (resguardada à lei) e regulamentar (reservada aos atos infralegais).

Penalidades tributárias, por configurarem limitação ao direito de propriedade e constituírem expressão do poder sancionador do Estado, somente podem ser instituídas por lei em sentido estrito, e no caso do IBS, da CBS e do Imposto Seletivo, por lei complementar, diante de sua natureza fundacional.

Tal vedação encontra amparo expresso também no art. 99 do CTN, que estabelece de forma categórica:

“Art. 99. O conteúdo e alcance dos decretos restringem-se aos das leis em função das quais sejam expedidos, determinados com observância das regras de interpretação estabelecidas nesta Lei.”

Esse dispositivo confere densidade normativa ao princípio da legalidade tributária, ao proibir que resoluções do Comitê Gestor do IBS ou decretos do Presidente da República, ainda que previstos expressamente na LC nº 214/2025 como instrumentos de regulamentação técnica, criem, agravem ou modifiquem obrigações ou penalidades.

Assim, mesmo que tais atos tenham competência para dispor sobre procedimentos operacionais, sistemas de escrituração, documentos fiscais eletrônicos e repartição de receitas, não podem, sob qualquer fundamento, suprir a ausência de previsão legal das sanções aplicáveis ao IBS, à CBS e ao Imposto Seletivo. Qualquer tentativa nesse sentido será inconstitucional e ilegal, e deverá ser anulada pelo Poder Judiciário, após sua provocação pelo interessado ou pelo Ministério Público.

 

V – NECESSIDADE DE NOVA LEI COMPLEMENTAR PARA SANAR A OMISSÃO

Diante desse cenário, impõe-se o reconhecimento de que a única via legítima e constitucional para suprir a omissão legislativa, relativa às penalidades aplicáveis ao IBS, à CBS e ao Imposto Seletivo, é a edição de nova lei complementar, alterando ou complementando a LC nº 214/2025.

Essa nova lei deverá prever de forma clara, objetiva e proporcional:

  • as multas aplicáveis ao descumprimento das obrigações principais (falta ou atraso no pagamento dos tributos e outros tipos de infrações relacionados com a obrigação tributária principal);
  • as sanções por infrações às obrigações acessórias (omissão de escrituração, falta de emissão de documento fiscal obrigatório, etc.);
  • os critérios para aplicação de agravantes e atenuantes;
  • o limite das penalidades, em respeito ao princípio da vedação ao confisco (art. 150, inciso IV, da CF/1988).

Até que essa lei complementar seja editada, não é possível exigir, cobrar ou lançar penalidades vinculadas aos novos tributos, sob pena de nulidade dos autos de infração, por violação à legalidade e por afronta ao devido processo legal.

 

VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A modernização do sistema tributário por meio da EC nº 132/2023 e da LC nº 214/2025 representa um avanço inegável. Todavia, essa reforma não pode ser interpretada como uma autorização tácita para o descumprimento dos princípios constitucionais fundamentais do Sistema Tributário Nacional.

Sem uma lei complementar que comine as penalidades, não há base legal para a imposição de sanções aos contribuintes que eventualmente descumprirem as normas do IBS, da CBS ou do Imposto Seletivo. A omissão atual da LC nº 214/2025, nesse ponto, compromete a eficácia e a legitimidade da fiscalização tributária, exigindo pronta atuação do legislador congressual.

E, como bem dispõe o art. 99 do CTN, atos normativos expedidos por autoridades administrativas, a exemplo de resoluções do Comitê Gestor e decretos do Chefe do Poder Executivo, não podem inovar o ordenamento jurídico tributário. Portanto, onde falta lei complementar, não pode haver penalidade válida.

Em um Estado de Direito, a eficácia da tributação está subordinada ao respeito incondicional à legalidade. E onde falta lei, não pode haver pena, nem substituição do legislador por órgãos administrativos.

Por fim, cabe lembrar que, por ocasião da futura edição de lei complementar para disciplinar as penalidades aplicáveis às infrações à legislação do IBS, da CBS e do Imposto Seletivo, mediante alteração da Lei Complementar nº 214/2025, os membros do Congresso Nacional deverão observar os parâmetros constitucionais já firmados pelo Supremo Tribunal Federal quanto à razoabilidade e à proporcionalidade das sanções tributárias, especialmente no que se refere ao limite percentual das multas.

É assim porque o STF, em diversos precedentes, como no julgamento do Recurso Extraordinário 736.090/SC (Tema 863, de Repercussão Geral), proferiu o entendimento de multas tributárias punitivas não podem ter caráter confiscatório, estabelecendo como orientação que penalidades superiores a 100% (cem por cento) do valor do tributo, ou de 150% (cento e cinquenta por cento) do valor do tributo em caso de reincidência relativa à mesma infração, tendem a violar os princípios do devido processo legal, da proporcionalidade e do não confisco (art. 150, inciso IV, da CF/1988).

Portanto, qualquer previsão normativa que ultrapasse os parâmetros acima deverá ser declarada inconstitucional.

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*JOSÉ RIBEIRO NETO é Advogado Tributarista e Penal-Tributarista, Auditor Fiscal da SEFAZ/CE aposentado, Mestre em Direito Constitucional e Especialista em Direito Público, Constitucional e Tributário. Foi Vice-Presidente do CONAT/CE e Presidente da 2ª Câmara de Julgamento do CONAT/CE, além de Julgador de Primeira e Segunda Instância. É autor dentre outros, dos seguintes livros: “Regulamento do ICMS/CE Integralmente Comentado”, “Direito Tributário & Legislação Tributária do Estado do Ceará – Comentários, Doutrina e Jurisprudência” e “Comentários è Legislação Tributária e Processual-Tributária do Estado do Ceará”, além de inúmeros artigos sobre matéria tributária. No prelo: “Comentários à Lei Complementar nº 214/2024 (Reforma Tributária), Lei do ICMS/CE Integralmente Comentada e Lei do CONAT/CE Integralmente Comentada.

Autores
José Ribeiro Neto
Reforma Tributária